Outro dia eu estava conversando com uma amiga que adora fazer trilhas e falávamos de subir um morro de onde, todos dizem, é lindo ver o nascer do Sol. “Mas eu quero dormir em uma cama de verdade”, eu disse. “Topo acordar de madrugada e fazer a trilha no escuro, mas durmo em uma pousada perto do morro. Já passei da idade de dormir em barraca”. Minha amiga, como eu disse tem uma pegada trilheira mais raiz e discordou radicalmente de mim: “prefiro dormir na barraca e ganhar essa hora de sono que vc vai gastar fazendo a trilha antes do nascer do Sol. Nos encontramos lá em cima.”
Tem gente para quem dormir na barraca é um prazer ou um pequeno preço a pagar pra poder estar na trilha. Quando a trilha é maravilhosa e justifica, eu até topo dormir uma noite ou duas na barraca, mas é sempre a última opção, quando não tem jeito nenhum de parar em uma pousada e passar a noite na cama, debaixo de um teto sólido e sem risco de me molhar se chover, que me proteja do vento e das outras condições da natureza.
Meus filhos, por outro lado, adoravam brincar de barracas. Quando eu me mudei há dez anos, e a casa ficou cheia de caixas, eles adoravam brincar que as caixas eram suas barracas e de montar grandes estruturas com elas. Estruturas com as quais precisávamos tomar muito cuidado para que um vento mais forte não destruísse um cidade de caixas inteira! Um pouco mais velhos, eles gostavam de desmontar as almofadas do sofá e montar suas barracas improvisadas no meio da sala ou de montar uma barraca na cama com os lençóis e ler a história de boa noite à luz de lanternas.
Sucot, que começa hoje, nos convida a fazermos a transição entre a vida protegida das nossas construções de alvenaria e a maior integração com os elementos da natureza representada pela vida nas barracas e nas cabanas nas quais vivemos durante os 40 anos da jornada entre a libertação da servidão e nossa chegada à Terra Prometida. Depois de termos passado Rosh haShaná e Iom Kipur em processos de introspecção profunda, olhando muito para dentro de nós mesmos, Sucot nos traz de volta à realidade concreta e à nossa relação com o lugar em que vivemos.
Há alguns anos, fui a uma exposição no Museu de Arte Contemporânea na qual uma instalação nos convidava a uma transição ainda mais radical. Começávamos em uma sala, bem construída, com todos os elementos de qualidade. conforme íamos caminhando, alguns elementos iam sendo substituídos por improvisos. O forro não existia demais e víamos direto as telhas, a parede deixava de ter massa corrida, o piso passava a ser só cimentado (e não era o cimento queimado, chique hoje em dia). As coisas iam piorando, as paredes passavam a ser feitas de compensado, as condições de habitação iam todas ficando deterioradas, como vemos nas favelas das nossas grandes cidades. Com o tempo, a casa ia sumindo e se transformando em um emaranhado de raízes, um labirinto do qual precisávamos escapar. Se a exposição ainda estivesse em cartaz, seria uma excelente vivência para Sucot. Ela nos cutucava em duas direções: a segurança que sentimos nas construções em que vivemos não é tão universal quanto gostamos de pensar e ela nos afasta de uma relação mais harmoniosa com os elementos da natureza que, com alguma frequência, nos demonstram que não estão satisfeitos com a forma como tratamos e abusamos do meio ambiente. No mundo todo, as mortes e destruições causados por eventos climáticos extremos — inundações, ciclones, secas — tem batidos recordes históricos e colocam em cheque a ideia de que nossas construções nos protegem do que acontece do lado de lá das nossas paredes.
O rabino Art Green, expressou essa ideia da seguinte forma:
Sucot é um momento para reconhecer que hoje nosso planeta, incluindo todas as suas colheitas futuras e todas as nossas gerações subsequentes, está sob terrível ameaça, em grande parte causada pela cegueira intencional e irresponsável da sociedade em que vivemos, especialmente por nossos chamados líderes. Diante do que está por vir, as belas casas que construímos para nós mesmos nos protegerão ainda menos do que as frágeis sukot nos nossos quintais. Como amantes do mundo criado por Deus, não podemos ser espectadores culpados pela sua destruição desenfreada por forças de ganância humana. Em tempos como esses, nossa reunião ao redor do mesa de Sucot deve incluir um elemento de planejamento estratégico junto com a comemoração. (…) Pense em Rabi Akiva e seus amigos sentando ao redor da mesa do seder de Pessach. Será que eles estavam, como muitos têm argumentado, planejando a revolta de Bar Kochbá? Como nós podemos, seguindo o chamado de Deus para a nossa geração, nos tornarmos revolucionários de Sucot? [1]
Diz a lei judaica que o schach, o teto da Sucá, deve criar sombra suficiente para cobrir metade do chão e, ao mesmo tempo, vazado o suficiente para podermos ver as estrelas através dele. Dessa forma, a Sucá permite, muito melhor que nossas casas permanentes, estarmos em contato com a natureza, com a chuva que sempre cai nessa época do ano, com os efeitos da temperatura elevada, com a poluição… Além disso, a lei estabelece que a Sucá precisa ter apenas duas paredes e meia, e assim ela se mantém mais aberta à cidade do que nossos prédios e edifícios (claro que isso fica bem menos relevante quando a Sucá está atrás dos muros ou das grades dos lugares em que vivemos), para que possamos perceber de que forma o resto da cidade vive e possamos desenvolver, além da empatia, vontade política para transformar essa realidade, entendendo de que forma a falta de uma habitação digna impacta o senso de dignidade de nossos co-cidadãos.
Passados quarenta anos, uma nova geração estava pronta para chegar à Terra de Israel e mudar sua conduta, atuando como um povo pronto para assumir suas responsabilidades na construção de uma nação baseada nos valores da Torá, na proteção às viúvas, aos órfãos e aos estrangeiros. Será que nós estamos dispostos a uma mudança similar de mentalidade, deixando de contemplar, cada um, apenas seus interesses pessoais imediatos e pensando nas nossas cidades, em suas construções e na forma como vivemos, de forma estratégica, em harmonia com o meio ambiente e considerando as mudanças climáticas que já estão em curso?
Que ao longo dos próximos 7 dias de Sucot possamos todos pensar em como transformamos nossa conduta pessoal e comunitária para dar resposta aos desafios que Sucot nos traz à tona.
[1] Arthur Green, Judaism for the World: Reflections on God, Life and Love (posição 269/718 no ebook)
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