Há alguns anos, o New York Times publicou um artigo na coluna Modern Love que teve grande repercussão. A autora, Mandy Len Catron, relata um experimento baseado num estudo acadêmico: ela e um conhecido sentaram-se frente a frente e responderam, uma a uma, a 36 perguntas pessoais, seguidas por alguns minutos de contato visual direto. O objetivo era induzir intimidade — e, quem sabe, amor. Surpreendentemente, funcionou. Os dois, que não estavam romanticamente envolvidos antes, acabaram apaixonados.
O que esse experimento sugere é que o amor não é apenas algo que “acontece” conosco. Ele pode ser construído. Podemos deliberadamente criar conexões emocionais — com tempo, atenção e vulnerabilidade. E se isso vale para o amor romântico, por que não também para o amor ético?
Esse é justamente o convite — ou o desafio — que aparece na parashá desta semana, em um dos versos mais conhecidos de toda a Torá:
“Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Eu sou ה׳.” (Levítico 19:18)
Mas essa frase tão familiar é, na verdade, profundamente desconcertante e nos deixa com muitas perguntas. Como se pode mandar alguém amar? O que, afinal, significa amar o próximo? E quem é esse próximo? E por que a equivalência com o amar a você mesmo?
Vamos tratar de duas destas perguntas hoje...
A primeira pergunta -- O que significa “amar como a si mesmo”? Maimônides, no Mishnê Torá, oferece uma resposta eminentemente prática. Amar o próximo, segundo ele, não é um sentimento passivo, mas algo que se concretiza em ações. Ele escreve:
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo — isso significa que tudo o que você deseja que os outros façam por você, faça você por seus irmãos e irmãs.”
Para Maimônides, amar o próximo é visitar os doentes, consolar os enlutados, acompanhar os mortos, celebrar com os noivos, ajudar em necessidades concretas. É, portanto, uma mitzvá ativa, incorporada na rotina da vida comunitária. O amor, aqui, não se limita à esfera da emoção: ele se realiza através do cuidado.
Nachmânides, o Rambanm por sua vez, reconhece que pode ser impossível amar o outro com a mesma intensidade com que amamos a nós mesmos. Mas ele propõe uma exigência igualmente desafiadora:
“Devemos desejar para o outro tudo o que desejamos para nós — e fazê-lo sem reservas.”
O problema, segundo Nachmânides, é que o ser humano tende a manter a vantagem: deseja o bem ao outro, mas desde que isso não o iguale a si próprio. A Torá, então, exige o contrário: que desejemos plenamente o bem do outro, mesmo que isso signifique abrir mão da nossa superioridade.
O rabino Shmuel Goldin resume essa ideia com uma frase marcante:
“A Torá não está exigindo o impossível — apenas o extraordinariamente difícil.”
Essa leitura nos convida a pensar o amor não como um sentimento natural, mas como uma orientação interna para desejar, de forma verdadeira, o florescimento do outro — e agir em consonância com esse desejo.
Por fim, Erich Fromm, no livro The Art of Loving, diz que o “amor é uma atividade… é principalmente dar, não receber” De acordo com ele, no ato de se dar, não perdemos, sacrificamos ou abrimos mão daquilo que nos é precioso. Amar é expressar nossa vitalidade, é desejar o crescimento e a plenitude da pessoa amada. Mas ele adverte: “Se um indivíduo ama apenas os outros, mas não a si mesmo, ele não ama de verdade”.
A segunda pergunta -- Quem é esse “próximo” que somos instruídos a amar? Pela tradução usual, “próximo” pode indicar alguém emocionalmente próximo de mim; já em outras versões, traduzido como “vizinho”, o termo pode sugerir quem está fisicamente próximo. Mas, no fundo, a pergunta essencial permanece: a quem se aplica essa obrigação? Apenas aos judeus? Também aos não judeus?
O contexto imediato do versículo parece apontar para uma limitação do mandamento -- amar apenas quem tem já faz parte do grupo. Os versículos anteriores falam sobre não tratar com indignidade os membros do teu povo, não odiar teus irmãos, repreender os membros do teu povo, não guardar rancor e não se vingar “de alguém do teu povo”.
Isso tem levado muitos comentaristass a argumentarem que o mandamento se restringe aos israelitas bíblicos — ou, numa leitura contemporânea, apenas aos judeus.
Essa leitura alega também que nossas obrigações são mais fortes para com aqueles de quem somos próximos. A doença de uma criança vivendo em outro continente não tem o mesmo peso emocional que quando o meu filho fica doente. Da mesma forma, pessoas vivendo na rua da minha cidade cortam meu coração muito mais do que o conhecimento de que pessoas vivem na rua do outro lado do mundo. Em uma passagem talmúdica que fala da nossa obrigação de ajudar quem precisa, isso é expresso da seguinte forma:
se houver escolha entre uma pessoa judia e uma não judia, a pessoa judia tem preferência; entre uma pessoa pobre e uma rica, a pessoa pobre tem prioridade; entre os pobres da própria família e os pobres em geral da cidade, os da família vêm primeiro; entre os pobres da própria cidade e os de outra cidade, os da própria cidade têm prioridade.[1]
No entanto, há fortes argumentos internos à própria Torá para uma interpretação bem mais ampla para a obrigação de amar ao próximo: Levítico 19:33–34, apenas alguns versículos depois, diz:
“Quando estrangeiros residirem com vocês em sua terra, não os oprima. Eles serão para vocês como os cidadãos, e você os amará como a você mesmo, pois vocês foram estrangeiros na terra do Egito. Eu sou ה׳ seu Deus.”
Mesmo em uma leitura estreita, o estrangeiro -- que em linguagem bíblica representa todas as pessoas vivendo em situação de opressão -- é colocado no mesmo nível legal e moral do cidadão israelita. A obrigação, desta forma, seria, pelo menos, de anar todos os israelitas e todos oss oprimidos.
Além disso, podemos argumentar que, num mundo em que os israelitas interagiam quase exclusivamente com seus pares e com os estrangeiros residentes, os dois mandamentos juntos — amar o “próximo” e o “estrangeiro” — abarcam praticamente todos com quem se convivia. Nesta linha de raciocínio, o rabino britânico Louis Jacobs escreveu:
“Em uma sociedade distinta, na qual os israelitas vivessem junto a não-israelitas, as implicações do mandamento geral se estenderiam para incluir também estes.”
Finalmente, o versículo termina com as palavras “Eu sou ה׳” — uma frase que, como muitos comentaristas sugerem, indica que esse amor é exigido não por afinidade ou conveniência, mas por princípio. Porque TODA a humanidade, segundo a tradição judaica, foi criada b’tzelem Elohim, à imagem Divina, o mandamento de amar não pode se restringir a um grupo. Ele é, por definição, universal.
Em um livro no qual argumenta que o amor — por Deus, pelo próximo e por si mesmo — está no centro da teologia e da prática judaica, apesar de muitas vezes ter sido negligenciado ou marginalizado, Shai Held analisa a passagem do Talmud mencionada acima, que estabelecia prioridades para nossas obrigações de ajudar quem precisa:
O comentarista talmúdico Menahem HaMeiri observa que, implícita na afirmação de que nossas obrigações com x “têm precedência” sobre nossas obrigações com y, está a ideia de que temos obrigações com ambos — x e y. Por exemplo, damos prioridade a um parente pobre, mas ainda assim temos a obrigação de ajudar outra pessoa necessitada da nossa cidade. Para HaMeiri, é especialmente importante destacar que, embora os pobres judeus tenham precedência sobre os pobres não judeus, é de forma inequívoca uma mitzvá e uma exigência moral ajudar ambos. [2]
No mesmo livro, Shai Held, refletindo sobre a obrigação de amar ao próximo como a si mesmo, escreve:
Podemos aprender a sentir compaixão ou preocupação diante do sofrimento de um grupo étnico desprezado por aqueles ao nosso redor “por meio de esforços de imaginação e empatia — esforços para conceber como seria estar no lugar dessas pessoas, enfrentar suas lutas, viver suas batalhas.” Em outras palavras, enxergar ou não os membros de uma minoria alvo em toda a sua humanidade depende, em grande medida, das decisões e compromissos que tomamos — ou deixamos de tomar. [3]
Essa reflexão se torna ainda mais urgente em tempos de conflito. Com frequência, vemos lados opostos de um embate — especialmente quando atravessado por dor e violência — incapazes de enxergar o sofrimento do outro. Choramos as perdas “do nosso lado”, mas nos tornamos indiferentes às vítimas do “outro lado”. Quando isso acontece, falhamos no cumprimento do mandamento de amar o próximo como a nós mesmos.
O amor ético que a Torá propõe não é automático, nem confortável. Ele exige esforço, imaginação, humildade. Ele nos convida a sair da bolha de nossos afetos naturais e a nos comprometer com o reconhecimento da dignidade humana — mesmo quando isso nos custa.
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou ה׳.”
Que essa frase não seja apenas um ideal recitado, mas um compromisso vivido — em nossas relações pessoais, em nossa comunidade e nas escolhas que fazemos frente à dor do outro.
Shabat Shalom!
[1] Talmud Bavli Bava Metzia 71a
[2] Shai Held, Judaism is about Love, posição 135/524 (Kindle)
[3] Shai Held, Judaism is about Love, posição 109/524 (Kindle)
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