Eu já disse aqui que há uma concentração de bom temas em algumas poucas parashiot da Torá: especialmente nos dois primeiros livros, Bereshit e Shemot, temos parashiot cheias de histórias, que facilitam o trabalho de escrever a prédica dada a quantidade de possibilidades. Daí entramos no deserto de Vaicrá e os incontáveis detalhes sobre os rituais de sacrifício, para desespero dos jovens Bnei-Mitsvá que precisam aprender sobre o que estão lendo e dos rabinos que precisam tirar água de pedra para escrever a prédica.
Os dois últimos livros, baMidbar e Devarim não são um terreno tão árido, mas estão longe de terem a enormidade de temas que tínhamos no começo do ciclo. Um pouco parecido com o cerrado, sem a exuberância da Mata Atlântica e sem a secura da catinga. Hoje eu estava escutando um podcast em que o jornalista falava do Deserto de Sonora, na fronteira entre o México e o Arizona, nos Estados Unidos, e das flores de todas as cores que ele encontrou, de forma inesperada, por lá. Neste nosso cerrado do livro de Devarim, na parashá desta semana, Ki Tavô, encontrei uma dessas flores inesperadas. Uma frase, que dá origem a inúmeras interpretações e a tratamentos em direções bastante distintas — tão diferentes que eu resolvi tratar de duas delas aqui com vocês.
A frase da Torá aparece logo no quinto verso da parashá. O texto está dizendo que quando os hebreus se estabelecerem na Terra de Israel, deve preparar uma cesta com primícias, levar até o local designado por Deus, entregar a cesta ao sacerdote, reconhecendo que está nesta terra porque Deus honrou a promessa que tinha feito a seus ancestrais e dizer:
וְעָנִיתָ וְאָמַרְתָּ לִפְנֵי ה׳ אֱלֹהֶיךָ
אֲרַמִּי אֹבֵד אָבִי וַיֵּרֶד מִצְרַיְמָה וַיָּגׇר שָׁם בִּמְתֵי מְעָט
וַיְהִי־שָׁם לְגוֹי גָּדוֹל עָצוּם וָרָב׃
Você deve então recitar o seguinte diante de ה׳, seu Deus:
“Meu pai era um arameu vagante. Ele desceu ao Egito com poucos números
e ali peregrinou; mas lá ele se tornou uma grande e muito populosa nação.” [1]
O texto continua, com mais detalhes sobre como nossos antepassados foram oprimidos no Egito, mas Deus os tirou de lá, e os trouxe para a Terra de Israel, mas é nessa frase que eu quero focar.
“אֲרַמִּי אֹבֵד אָבִי”, “Meu pai era um arameu vagante” é uma frase que eu conhecia bem, que está na hagadá de Pessach. De acordo com a tradição que eu aprendi, quando fazemos as 4 perguntas do Má Nishtaná, “por que essa noite é diferente de todas as outras noites?”, dois sábios da Babilônia tiveram opiniões opostas — Shmuel acreditava que o Sêder de Pêssach celebrava nossa libertação física, política, de uma situação de opressão e, por isso, propunha que a resposta para o Má Nishtaná deveria ser “עֲבָדִים הָיִינו”, “nós fomos escravos”, enquanto Rav acreditava que a Sêder de Pêssach celebrava nossa libertação espiritual em relação à situação de paganismo em que nossos antepassados se encontravam e propunha que falássemos disso. “אֲרַמִּי אֹבֵד אָבִי” é um dos textos usados para isso. Quando lêmos essa passagem no Shacharit de 2a feira e eu me dei conta de como “אֲרַמִּי אֹבֵד אָבִי” era traduzido no Sidur Shavua Tov, levei um susto! “Laván, o arameu, quis fazer perecer o meu pai.” Depois, pesquisando um pouco mais me dei conta de que há uma longa tradição de questionar quem era arameu e que muitos comentaristas consideram, de fato, que era Laván. Mesmo assim, percebam a enorme diferença entre “Meu pai era um arameu vagante” e “Laván, o arameu, quis fazer perecer o meu pai.” Não apenas o nome de Laván não aparece no texto em hebraico, mas a ênfase da tradução que eu apresentei parece ser a modéstia de reconhecer suas origens humildes, enquanto a ênfase da tradução que eu encontrei no sidur enfatiza um aspecto de perseguição, de se enxergar como vítima.
Há comentaristas famosos e reputados dos dois lados desse debate: apoiando a tradução que aparece no sidur (exceto pela inclusão do nome de Laván, que não se encontra, de forma alguma, no texto em hebraico, ainda que a referência ao arameu possa ser implicitamente a ele), estão Rashi e o Maharal de Praga; do outro lado do debate, Rashbam (o neto de Rashi), Even Ezra e Sforno.
A pergunta que este debate deixa, no entanto, é como lidamos com passagens da Torá que estejam em contradição com a forma como enxergamos a nós mesmos e nosso judaísmo em 5783.
O rabino Lawrence Hoffman, um dos maiores especialistas em liturgia judaica no mundo liberal, diz que “os fiéis liberais enfrentaram esse dilema de uma maneira diferente dos tradicionalistas: como seus livros de rezas traziam rezas em tradução, de repente descobriram o que vinham dizendo há muitos anos, mas nunca tinham sabido. Os editores dos livros de rezas responderam com várias estratégias. (…) eles intencionalmente traduziram erroneamente os originais para evitar idéias com as quais os autores antigos não tinham problemas, mas que os congregantes modernos achavam horríveis”. [2]
Quando o texto fala que meu antepassado estava perdido espiritualmente, será que eu tenho a coragem de enfrentar quanta verdade há nessa afirmação — quanto eu mesmo, não apenas meu pai, ainda me encontro perdido — ou prefiro adotar uma tradução que amenize o tom do texto? Quando o texto da Torá pergunta “מי כמוך באלים ה׳?”, “quem é como Você entre os deuses, Adonai?”, será que eu consigo me perguntar a quais deuses eu continuo dando espaço na minha vida ou vou preferir traduzir o texto, como faz nosso sidur como “Quem é como Tu, entre os poderosos, ó Adonai?”. Até que ponto retrojetamos nossa própria visão de mundo judaica sobre textos antigos sem, no entanto, termos a ousadia de alterar o hebraico ou quando reconhecemos que o que aquele texto diz não mais reflete o que acreditamos a lidamos com as consequências desse fato? Em duas semanas, em Rosh haShaná leremos histórias complicadas sobre nossos patriarcas, sobre a expulsão de um filho e o quase sacrifício de outro — será que teremos coragem de enfrentar essas histórias no seu âmago ou partiremos da premissa de que, se nossos patriarcas se comportaram desta forma, então eles deviam estar certos?!
Rashi viveu na França do século XI, indicando que essas questões não são recentes, mas elas continuam relevantes. O rabino Nilton Bonder, no seu livro “A Alma Imoral” menciona um ditado italiano que afirma “tradutore, traditore” — “tradutor, traidor”. Toda tradução envolve um trabalho que ressignificação de uma cultura para outra, mas que nesse processo não traiamos nem o texto original, nem as pessoas que dependem da tradução para entender o que está sendo dito.
A segunda questão levantada pela frase “אֲרַמִּי אֹבֵד אָבִי”, “Meu pai era um arameu vagante” tem a ver com o contexto no qual ela é dita e com o qual muitos imigrantes judeus que deram certo nesse país maravilhoso podem se identificar. Rashbam afirma que ao identificar o arameu vagante com meu pai, não um ancestral longíquo, mas meu pai, de quem eu descendo diretamente, dá relevância pessoal a esta afirmação a cada ano em que ela é repetida. Ao levarmos o fruto de nosso trabalho na cesta de primícias sendo oferecidas, reconhecemos que nosso sucesso não é apenas mérito nosso: é Deus quem transforma sementes em frutos, quem liberta os cativos. Na leitura de Rashbam, é como se cada pessoa afirmasse: “meus pais vieram de uma terra estranha, na qual eles eram escravos, para essa terra boa e próspera. Agora, como sinal de gratidão, eu trago estas primícias da terra para o Templo porque eu reconheço que esta fartura não é realização minha, mas eu desfruto dela pelo amor de Deus.”
Que diferença para a mentalidade de self-made-person, para quem todo sucesso é fruto exclusivo do seu talento e esforço e que se recusa a reconhecer a contribuição de qualquer outro fator.
Que nessas semanas finais de Elul possamos considerar de onde viemos e que fatores nos possibilitaram chegar até aqui. Que na reflexão desses dias possamos olhar com coragem e verdade para nossa tradição e para nossa conduta, honrar o que merece ser honrado, transformar o que precisa ser transformado.
[1] Deut. 26:5
[2] Hoffman, Lawrence A. “Prayers of Awe, Intuitions of Wonder”, Who by Fire, Who by Water: Un’taneh Tokef. Lawrence A. Hoffman (ed.), Woodstock, Vt: Jewish Lights Pub, 2010. pp. 4-12.
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