sexta-feira, 21 de julho de 2023

Dvar Torá: Uma comunidade em permanente transformação




Pra quem não se deu conta ainda, nós estamos na contagem regressiva para Rosh haShaná e Iom Kipur: na quarta feira, entramos no mês de Av, o penúltimo do calendário judaico. 

Por isso, estamos por aqui preparando o calendário de 5784, aquele que os sócios recebem quando um novo ano judaico começa. No processo de revisão esta semana, me dei conta com algumas datas que tem tanta informação que ela quase não cabe naquela caixinha da grade do calendário. 26 de Kislev de 5784, por exemplo, que corresponde ao dia 09 de dezembro de 2023, tem, além da data judaica e civil, também as seguintes informações: horário de acendimento das velas de Chanucá, a parashá daquele shabat, Vaishêv, o fato de que é o último shabat do mês judaico, que se chama “shabat mevarchim”, o segundo dia de Chanucá e que acendemos a 3ª velas de Chanucá ao entardecer daquele dia. Nas longas conversas entre os revisores, a dúvida sobre a hierarquia de todas essas informações era repetida a cada vez que a célula de uma data ia ficando cheia…

16 de julho de 2013 não foi, para a maioria das pessoas, uma dessas datas cheias de acontecimentos, mas na minha agenda pessoal, foi uma célula que estava extravasando. Era meu aniversário, que eu passei em jejum porque também era Tishá b’Av, a data do calendário judaico que marca as grandes tragédias da nossa história e também foi o dia em que minha família e eu voltamos a viver no Brasil, depois de oito ano estudando e trabalhando nos Estados Unidos. Neste último domingo, completamos dez anos desse processo. 

Minha família e eu tomamos a decisão de voltarmos ao Brasil em maio de 2013 e chegamos aqui em julho daquele ano. Entre esses dois meses, é óbvio, está junho de 2013, aquele mês nos quais as manifestações contra o aumento no preço das passagens de ônibus levaram milhares de pessoas às ruas, depois ainda mais gente foi para protestar contra a repressão policial das primeiras manifestações e, então, as pessoas nem sabiam mais os motivos das manifestações, mas cada vez mais gente saía às ruas para protestar por razões difusas. Decidimos voltar para um país e, dois meses depois, chegamos a um lugar completamente diferente.

No mês passado,  tivemos lançamentos de livros, inúmeros especiais na imprensa escrita e nos podcasts que eu escuto trataram dos impactos dessas manifestações e da década que as seguiu. O Brasil de 2023 é, simultaneamente resultado dos processos desencadeados 10 anos antes e radicalmente diferente da nação que existia então e vamos passar as próximas décadas entendendo todas as formas como esses dois Brasis são resultado um do outro e iguais ou diferentes um do outro. Infelizmente, nenhuma destas retrospectivas tratou destes dez anos para mim e das profundas reviravoltas que aconteceram na minha vida. 

Nesta semana começamos a ler o quinto livro da Torá, Devarim ou Deuteronômio. Esse livro narra os momentos finais da longa jornada de 40 anos dos israelitas pelo deserto, uma travessia que os levou da dor da opressão à alegria da chegada à Terra Prometida, mas que também teve sua parcela de dores e de angústias, na qual toda uma geração pereceu para permitir que uma nova mentalidade determinasse o futuro do povo hebreu na sua própria terra. Ao longo das próximas semanas, escutaremos como Moshé revisita os principais episódios desses 40 anos vagando, incluindo a entrega da Torá, as crises do Bezerro de Ouro e dos Doze Escoteiros.

Se alguns argumentariam contra o egocentrismo do rabino de usar a prédica para revisar os últimos dez anos da sua vida (e outros adorariam as fofocas que fariam parte dessa revisão), eu queria aproveitar a prédica de hoje e pensar em como essa comunidade se transformou na última década, outro aspecto que passou batido nas retrospectivas que eu vi até agora.

Deixa eu começar com dois avisos iniciais: Primeiro: amanhã, dia 22, eu completo exatamente 4 anos e meio de CIP, então ainda que eu tenha sido parte do processo de transformação do que eu vou falar, são processos que vêm se desenvolvendo ao longo de uma década, muitos deles ocorridos bem antes da minha chegada a esta casa. Segundo: o processo de transformação da CIP é permanente, sempre foi. Nenhuma comunidade chega aos 87 anos exatamente da mesma forma que foi fundada, mas a CIP tem a mudança no seu DNA, é parte da identidade de quem somos. Eu poderia dizer que o Judaísmo tem a mudança como parte do seu DNA por sempre ter estado em diálogo com o mundo que o cerca e que o Judaísmo Liberal, que busca ainda mais a parceria com a sociedade mais ampla, acentua este aspecto de evolução constante. A CIP chegou a 2013 muito diferente do que ela era em 2003, mas como todo o resto do contexto à nossa volta, as mudanças se aceleraram nos últimos dez anos.

No final de 2008, quase cinco anos antes do período em que eu vou me focar, eu vim para a CIP, com a minha filha de alguns meses amarrada com um tecido ao meu peito. Quando um membro da Comissão de Culto me convidou para uma aliá, ele me disse: “aproveita, porque esta é a última chance que ela tem de subir à Bimá”. Hoje minha filha completa 15 anos e eu tenho um orgulho enorme de dizer que nessa comunidade meninas e mulheres não são apenas convidadas a subirem à Torá mas são fortemente encorajadas a fazê-lo.

Poucos meses depois de chegar ao Brasil em 2013, um diretor voluntário da escola  judaica em que eu trabalhava, um pouco incomodado com uma visão igualitária de Judaísmo, me abordou e disse: “é fácil, Rogério. Nós seguimos a linha da CIP — se pode fazer lá, pode fazer aqui.” Pouco tempo depois dessa conversa, a CIP contratou a rabina Deby Greenberg e eu o provoquei: “agora vamos contratar uma rabina também?”. “Não”, ele me respondeu. “Nosso judaísmo é o da CIP de 6 meses atrás.” 

Muitos de vocês devem se lembrar de quando homens e mulheres se sentavam separados aqui na CIP. A prática foi sendo abandonada aos poucos, de forma gradativa, mas até poucos anos ela continuava em Rosh haShaná e Iom Kipur aqui na Antonio Carlos, prática que foi abnadandonada por pressão de famílias que queriam se sentar juntas também nas Grandes Festas.

O programa de educação adulta da CIP de hoje não podia ser sonhado há dez anos — o curso de Introdução ao Judaísmo foi completamente reformulado, com a abordagem simultaneamente comprometida e crítica que caracteriza o judaísmo CIPiano. A Academia Judaica substituiu as poucas aulas semanais que tínhamos para adultos por dezenas de cursos oferecidos nos últimos anos. 

O Shabat do orgulho, que aconteceu aqui na CIP no mês passado, foi o resultado de um processo que se desenvolveu ao longo de vários anos e que busca ampliar nosso olhar para reconhecer todos os membros da nossa comunidade e acolher cada pessoa como ela é, sem pré-condições — pelo contrário, revisitando nossos preconceitos e garantindo que todos se sintam plenamente.

A musicalidade dos nossos serviços religiosos nos inspira cada vez mais. O Cabalat Shabat consegue se transformar continuamente e continuar sendo a experiência bem sucedida que é, e se você não participou recentemente do nosso Shacharit de Shabat, quero te convidar a vir e vivenciar como ele se transformou.  

Assim como a travessia dos israelitas pelo deserto teve sua dose de dores e desafios, as transformações pelas quais a CIP passou nos últimos dez anos tampouco foram sempre tranquilas. Há segmentos comunitários importantes que se incomodaram com as novas diretrizes. Há outros segmentos que acharam que as mudanças não aconteceram na velocidade que os temas demandavam. Todos eles têm razão. Mudanças são sempre difíceis, em particular em espaços que nos trazem um senso de pertencimento pelo vínculo eterno à tradição. Por outro lado, a paciência, eu gosto de dizer, é uma prerrogativa dos opressores. Difícil pedir a alguém que não se sente reconhecido como indivíduo que aguente esta situação por mais algum tempo, até que as condições comunitárias sejam mais propícias.

E, mesmo assim.… E apesar de dois anos muito difíceis pela pandemia, chegamos a 2023 muito mais fortes do que estávamos em 2013 — uma comunidade mais aberta, mais diversa, mais acolhedora, mais instruída, com mais espiritualidade e oportunidades para todos. 

Que possamos ir de força a força e chegar ainda mais fortes a 2033.

Shabat Shalom!


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