segunda-feira, 31 de julho de 2023

Tu b'Av (2023) - Fascículo da UJR


O rabino Nehemia Polen, com quem eu tive a honra de estudar, nos ensinava que os sacrifícios oferecidos no Templo podiam ser comparados às flores ou outros presentes que casais dão um ao outro com frequência: há flores para pedir desculpas por alguma mancada, há flores para uma ocasião especial e há flores para dizer simplesmente “pensei em você durante o dia e quis te fazer um agrado.” Em nossas vidas amorosas, temos momentos especiais que queremos eternizar e relembrar com frequência, há momentos em que falhamos e para os quais buscamos caminhos de correção – mas para a maioria dos casais, na maior parte do tempo estamos envolvidos no esforço de manter o fogo aceso, o companheirismo ativo, o olhar e a escuta atentos para enxergar e ouvir o outro e apoiá-lo onde estiver. 


Assim como nas nossas relações românticas, também a relação do povo judeu teve momentos de êxtase, como a entrega da Torá no Monte Sinait e momentos de profunda crise, como a adoração do Bezerro de Ouro ou a falta de fé do povo que seguiu a opinião pessimista da maioria dos escoteiros enviados para investigar a Terra de Israel. Para relembrarmos estes eventos mais dramáticos, temos celebrações (como Shavuot) e datas de tom mais soturno (como 17 de Tamuz e Tishá b’Av), dependendo da natureza do evento que buscamos reviver. Na maior parte dos dias, no entanto, buscamos manter acesa a chama do nosso relacionamento com o Divino, qualquer que seja a forma que cada um de nós a sente e define. Parte da forma como a liturgia faz isso, é falando de amor, pelo menos quatro vezes ao dia: de manhã, rezamos Ahavá Rabá (“Amor imenso”) e à noite, Ahavat Olam (“Amor eterno”), antes do Sh’má Israel. Ambos falam do amor que Deus nutre por nós. Imediatamente após o Sh’má, dizemos o veAhavtá, na qual discorremos sobre o amor que nós sentimos por Deus. Amor profundo, mútuo e reafirmado constantemente.

 

No entanto, quem já esteve em uma briga mais séria sabe que nessas situações, a mágoa se estabelece e, por algum tempo, é necessária paciência para esperar ela passar. De acordo com um midrash, após o episódio no qual dez dos doze escoteiros enviados para investigar a terra de Israel voltaram com narrativas pessimistas e convenceram o povo de que não conseguiriam conquistar a terra prometida[1], Deus teria ficado tão magoado com o episódio que teria parado de falar com Moshé e que esta interrupção na comunicação se manteria até que toda aquela geração tivesse falecido[2]. Foi em um dia 15 de Av (Tu b’Av) que o diálogo entre Deus e Moshé se restabeleceu, indicando a todos que as mortes haviam terminado e que todos aqueles que continuavam vivos poderiam entrar na terra de Israel. Desde então a data de Tu b’Av teria sido estabelecida como uma data feliz no calendário, aquela em que nos relembramos do momento em que conseguimos superar uma das maiores crises no relacionamento do povo judeu com Deus.

 

Desde então, Tu b’Av se tornou a data do calendário judaico que fala do amor. Para ser sincero, apesar de a Mishná afirmar que este dia é, junto com Iom Kipur, um dos dois mais felizes do calendário judaico[3], é uma daquelas datas comemorativas para as quais nem sempre damos atenção, para as quais encontramos poucas referências e não sabemos bem como comemorar.

 

Vivemos em tempos em que a fluidez conceitual passou a definir nosso modo de vida e no qual as palavras ganharam tantas interpretações distintas, que muitas vezes é difícil saber se estamos todos falando das mesmas coisas. Neste contexto, “amor” é paradoxalmente um termo que todos temos certeza que entendemos o que ele significa e que não sabemos se a nossa compreensão é a mesma da das outras pessoas. Tu b’Av é uma excelente oportunidade de festejarmos o amor e também falarmos sobre ele, expandirmos nossos conceitos e entendermos o ponto de vista de quem pensa diferente. 

 

Estamos também na reta final para Rosh haShaná e Iom Kipur, a duas semanas do início de Elul, o último mês do calendário judaico, tradicionalmente dedicado ao processo de cheshbon nefesh, a “contabilidade da alma” na qual avaliamos nossa conduta no ano que chega ao fim. Tu b’Av é uma oportunidade de começarmos cedo neste processo, nos perguntando quais são os relacionamentos com os quais realmente nos importamos e nos quais passamos por uma crise, para buscarmos o reencontro que o primeiro Tu b’Av significou.

 

Que este Tu b’Av seja uma oportunidade de transformação, de encontros e reencontros, de descobertas e de ampliação do que já era conhecido!

 

Chag haAhavá Sameach! Feliz festa do amor!

 



[1] . Num. 13-14

[2] . Talmud Bavli Taanit 30a

[3] . Mishná Taanit 4:8

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Dvar Torá: Uma comunidade em permanente transformação




Pra quem não se deu conta ainda, nós estamos na contagem regressiva para Rosh haShaná e Iom Kipur: na quarta feira, entramos no mês de Av, o penúltimo do calendário judaico. 

Por isso, estamos por aqui preparando o calendário de 5784, aquele que os sócios recebem quando um novo ano judaico começa. No processo de revisão esta semana, me dei conta com algumas datas que tem tanta informação que ela quase não cabe naquela caixinha da grade do calendário. 26 de Kislev de 5784, por exemplo, que corresponde ao dia 09 de dezembro de 2023, tem, além da data judaica e civil, também as seguintes informações: horário de acendimento das velas de Chanucá, a parashá daquele shabat, Vaishêv, o fato de que é o último shabat do mês judaico, que se chama “shabat mevarchim”, o segundo dia de Chanucá e que acendemos a 3ª velas de Chanucá ao entardecer daquele dia. Nas longas conversas entre os revisores, a dúvida sobre a hierarquia de todas essas informações era repetida a cada vez que a célula de uma data ia ficando cheia…

16 de julho de 2013 não foi, para a maioria das pessoas, uma dessas datas cheias de acontecimentos, mas na minha agenda pessoal, foi uma célula que estava extravasando. Era meu aniversário, que eu passei em jejum porque também era Tishá b’Av, a data do calendário judaico que marca as grandes tragédias da nossa história e também foi o dia em que minha família e eu voltamos a viver no Brasil, depois de oito ano estudando e trabalhando nos Estados Unidos. Neste último domingo, completamos dez anos desse processo. 

Minha família e eu tomamos a decisão de voltarmos ao Brasil em maio de 2013 e chegamos aqui em julho daquele ano. Entre esses dois meses, é óbvio, está junho de 2013, aquele mês nos quais as manifestações contra o aumento no preço das passagens de ônibus levaram milhares de pessoas às ruas, depois ainda mais gente foi para protestar contra a repressão policial das primeiras manifestações e, então, as pessoas nem sabiam mais os motivos das manifestações, mas cada vez mais gente saía às ruas para protestar por razões difusas. Decidimos voltar para um país e, dois meses depois, chegamos a um lugar completamente diferente.

No mês passado,  tivemos lançamentos de livros, inúmeros especiais na imprensa escrita e nos podcasts que eu escuto trataram dos impactos dessas manifestações e da década que as seguiu. O Brasil de 2023 é, simultaneamente resultado dos processos desencadeados 10 anos antes e radicalmente diferente da nação que existia então e vamos passar as próximas décadas entendendo todas as formas como esses dois Brasis são resultado um do outro e iguais ou diferentes um do outro. Infelizmente, nenhuma destas retrospectivas tratou destes dez anos para mim e das profundas reviravoltas que aconteceram na minha vida. 

Nesta semana começamos a ler o quinto livro da Torá, Devarim ou Deuteronômio. Esse livro narra os momentos finais da longa jornada de 40 anos dos israelitas pelo deserto, uma travessia que os levou da dor da opressão à alegria da chegada à Terra Prometida, mas que também teve sua parcela de dores e de angústias, na qual toda uma geração pereceu para permitir que uma nova mentalidade determinasse o futuro do povo hebreu na sua própria terra. Ao longo das próximas semanas, escutaremos como Moshé revisita os principais episódios desses 40 anos vagando, incluindo a entrega da Torá, as crises do Bezerro de Ouro e dos Doze Escoteiros.

Se alguns argumentariam contra o egocentrismo do rabino de usar a prédica para revisar os últimos dez anos da sua vida (e outros adorariam as fofocas que fariam parte dessa revisão), eu queria aproveitar a prédica de hoje e pensar em como essa comunidade se transformou na última década, outro aspecto que passou batido nas retrospectivas que eu vi até agora.

Deixa eu começar com dois avisos iniciais: Primeiro: amanhã, dia 22, eu completo exatamente 4 anos e meio de CIP, então ainda que eu tenha sido parte do processo de transformação do que eu vou falar, são processos que vêm se desenvolvendo ao longo de uma década, muitos deles ocorridos bem antes da minha chegada a esta casa. Segundo: o processo de transformação da CIP é permanente, sempre foi. Nenhuma comunidade chega aos 87 anos exatamente da mesma forma que foi fundada, mas a CIP tem a mudança no seu DNA, é parte da identidade de quem somos. Eu poderia dizer que o Judaísmo tem a mudança como parte do seu DNA por sempre ter estado em diálogo com o mundo que o cerca e que o Judaísmo Liberal, que busca ainda mais a parceria com a sociedade mais ampla, acentua este aspecto de evolução constante. A CIP chegou a 2013 muito diferente do que ela era em 2003, mas como todo o resto do contexto à nossa volta, as mudanças se aceleraram nos últimos dez anos.

No final de 2008, quase cinco anos antes do período em que eu vou me focar, eu vim para a CIP, com a minha filha de alguns meses amarrada com um tecido ao meu peito. Quando um membro da Comissão de Culto me convidou para uma aliá, ele me disse: “aproveita, porque esta é a última chance que ela tem de subir à Bimá”. Hoje minha filha completa 15 anos e eu tenho um orgulho enorme de dizer que nessa comunidade meninas e mulheres não são apenas convidadas a subirem à Torá mas são fortemente encorajadas a fazê-lo.

Poucos meses depois de chegar ao Brasil em 2013, um diretor voluntário da escola  judaica em que eu trabalhava, um pouco incomodado com uma visão igualitária de Judaísmo, me abordou e disse: “é fácil, Rogério. Nós seguimos a linha da CIP — se pode fazer lá, pode fazer aqui.” Pouco tempo depois dessa conversa, a CIP contratou a rabina Deby Greenberg e eu o provoquei: “agora vamos contratar uma rabina também?”. “Não”, ele me respondeu. “Nosso judaísmo é o da CIP de 6 meses atrás.” 

Muitos de vocês devem se lembrar de quando homens e mulheres se sentavam separados aqui na CIP. A prática foi sendo abandonada aos poucos, de forma gradativa, mas até poucos anos ela continuava em Rosh haShaná e Iom Kipur aqui na Antonio Carlos, prática que foi abnadandonada por pressão de famílias que queriam se sentar juntas também nas Grandes Festas.

O programa de educação adulta da CIP de hoje não podia ser sonhado há dez anos — o curso de Introdução ao Judaísmo foi completamente reformulado, com a abordagem simultaneamente comprometida e crítica que caracteriza o judaísmo CIPiano. A Academia Judaica substituiu as poucas aulas semanais que tínhamos para adultos por dezenas de cursos oferecidos nos últimos anos. 

O Shabat do orgulho, que aconteceu aqui na CIP no mês passado, foi o resultado de um processo que se desenvolveu ao longo de vários anos e que busca ampliar nosso olhar para reconhecer todos os membros da nossa comunidade e acolher cada pessoa como ela é, sem pré-condições — pelo contrário, revisitando nossos preconceitos e garantindo que todos se sintam plenamente.

A musicalidade dos nossos serviços religiosos nos inspira cada vez mais. O Cabalat Shabat consegue se transformar continuamente e continuar sendo a experiência bem sucedida que é, e se você não participou recentemente do nosso Shacharit de Shabat, quero te convidar a vir e vivenciar como ele se transformou.  

Assim como a travessia dos israelitas pelo deserto teve sua dose de dores e desafios, as transformações pelas quais a CIP passou nos últimos dez anos tampouco foram sempre tranquilas. Há segmentos comunitários importantes que se incomodaram com as novas diretrizes. Há outros segmentos que acharam que as mudanças não aconteceram na velocidade que os temas demandavam. Todos eles têm razão. Mudanças são sempre difíceis, em particular em espaços que nos trazem um senso de pertencimento pelo vínculo eterno à tradição. Por outro lado, a paciência, eu gosto de dizer, é uma prerrogativa dos opressores. Difícil pedir a alguém que não se sente reconhecido como indivíduo que aguente esta situação por mais algum tempo, até que as condições comunitárias sejam mais propícias.

E, mesmo assim.… E apesar de dois anos muito difíceis pela pandemia, chegamos a 2023 muito mais fortes do que estávamos em 2013 — uma comunidade mais aberta, mais diversa, mais acolhedora, mais instruída, com mais espiritualidade e oportunidades para todos. 

Que possamos ir de força a força e chegar ainda mais fortes a 2033.

Shabat Shalom!


quinta-feira, 13 de julho de 2023

Ativismo judicial em tempos talmúdicos

Há épocas em que nos acostumamos a ver nas páginas dos jornais termos técnicos profissionais que, em outras situações, a maioria de nós nunca sonharia em conhecer. Foi assim que, durante os anos da pandemia, nos tornamos experts nos diversos tipos de exame para detecção do vírus, de tecnologias de vacinas, e por aí vai… Nas últimas décadas, mesmo quem não é advogado, tem se acostumado com debates sobre o “ativismo judicial”. Esta conversa, que, entre outros países, tem acontecido com intensidade com relação aos tribunais superiores dos Estados Unidos e do Brasil (STF, STJ, TSE), ganhou maior intensidade nos últimos meses devido a um polêmico projeto do governo de Israel, que busca regulamentar a questão. 

Mas, afinal, do que estamos falando? Eli Salzberger, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Haifa, nota que há dois tipos de ativismos judiciais. O primeiro se relaciona com a latitude que juízes têm para interpretar a legislação ou para divergir da jurisprudência adotada. O segundo tipo de ativismo judicial tem a ver com a inter-relação entre os poderes “focando no papel dos tribunais em moldarem tomadas de decisões coletivas na sociedade, relativamente ao papel dos outros Poderes do governo — o Legislativo e o Executivo, e em relaçção à opinião pública.” [1]

Em geral, a crítica do ativismo judicial foca no fato de um grupo de juízes não-eleitos interferir nas políticas públicas determinadas por assembléias legislativas ou por governantes, ambos eleitos. Em sua defesa, argumenta-se que a defesa de certos valores sociais fundamentais não podem ficar à mercê da volatilidade da opinião pública a cada ciclo eleitoral — nessas situações, quando se coloca em risco o respeito aos Direitos Humanos ou à Democracia, os tribunais superiores precisam intervir na defesa destes valores. 

O professor Salzberger diz que “o sistema judicial israelense é apresentado, tanto por acadêmicos israelenses quanto não-israelenses como um dos mais ativistas do mundo, mas também um de alta qualidade.” Como evidência da última afirmação, ele cita um alto membro do sistema judicial britânico, que teria afirmado que “a Suprema Corte israelense é uma das melhores cortes que ele conhece em todo o mundo”.

O desenvolvimento das interpretações e das implicações legais a respeito de um trecho da parashá dupla desta semana, Matot-Massei, pode nos dar uma figura das remotas origens do ativismo judicial na tradição judaica. Para entendermos a questão em jogo, precisamos retornar para a leitura da Torá da semana passada, parashát Pinchás. Lá, um homem hebreu (Tselofchád) morre deixando cinco filhas. Pelas regras vigentes na época, como ele não tinha filhos homens, sua herança seria perdida pela família. [2] As filhas de Tselofchád questionam Moshé sobre a justiça desta regra; Moshé leva o questionamento a Deus, que decide que as filhas têm razão e que, dali em diante, quando não houverem filhos homens, as filhas receberão a herança de seu pai. Assim terminou a história na semana passada.

No entanto, há uma reviravolta na história na leitura desta semana. Um grupo de israelitas da mesma tribo que Tselofchád abordou Moshé reclamando da decisão que havia sido tomada com relação às filhas de Tselofchád. Eles argumentavam que, se elas se casassem fora de sua tribo, a propriedade seria transferida para a tribo de seu marido, gerando uma perda coletiva para a tribo original. Novamente, Moshé leva a questão a Deus, que dá razão aos membros da tribo, estabelecendo que mulheres que recebessem herança de seus pais apenas poderiam se casar com membros da própria tribo. [3] 

Ainda que a primeira decisão com relação a mulheres poderem receber herança de seus pais vá na direção de um tratamento legal mais igualitário entre homens e mulheres, fica claro que é um passo bastante tímido, não chegando nem perto de estabelecer uma igualdade de fato. Pior ainda, ao estabelecer restrições para com quem estas mulheres herdeiras podem casar, a segunda decisão caminha na direção contrária à igualdade.

Por um motivo ou por outro, os Rabinos do Talmud decidiram que esta lei bíblica não poderia ser cumprida da forma como ela estava escrita. No entanto, como é tradicional do discurso rabínico, os Sábios não contrariaram a regra diretamente em seu aspecto ético. A prática rabínica clássica é implementar profundas revoluções através de narrativas de continuidade, e aqui não foi diferente. Em uma longa troca de opiniões registrada no Talmud Bavli, os Rabinos estabelecem (1) que a regra se aplicaria apenas à geração das filhas de Tselofchád, não depois disso; e (2) as filhas de Tselofchád estariam isentas de cumprirem a regra e poderiam casar com pessoas de qualquer tribo! [4]

Desde os tempos talmúdicos, a tradição rabínica tem “reinterpretado” inúmeras regras bíblicas, estabelecendo mudanças interpretativas importantes, ainda que caracterizando-as como continuação do que sempre houve. Em particular, estas atitudes foram tomadas para salvaguardar a dignidade humana. 

Que todas as instâncias da nossa sociedade possam agir da mesma forma e proteger a dignidade humana: seja através de legislação, de políticas públicas ou da interpretação ativa da lei — que possamos rejeitar mudanças que caminhem na direção contrária, parta ela de onde partir.

Shabat Shalom!


[1] Eli M Salzberger, “Judicial Activism in Israel” (2003), p. 2. 

[2] Num. 27:1-11

[3] Num. 36:1-12

[4] Talmud Bavli Bava Batra 120a-120b