sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

O nome Israel: nosso passado e nosso futuro


A primeira evidência arqueológica do povo judeu é uma estela (uma placa de pedra em que eram feitas inscrições na antiguidade) do século 13 aEC, em que aparece o nome “Israel” associado a um povo que teria sido destruído pelos egípcios. Mais de 3.200 anos depois, continuamos aqui, sinal de que quem escreveu esse texto muito antigo não tinha plena consciência da resiliência do povo judeu. Ao longo dos séculos, foi principalmente pelo nome Israel que o povo judeu foi conhecido, um fato marcado nos nomes das principais instituições judaica brasileiras (por exemplo, CIP, FISESP e CONIB). Um salto para o passado mais recente: nas vésperas da declaração da independência de Israel, um grupo de líderes da comunidade judaica na Terra de Israel se reuniu para discutir que nome dariam para o estado judeu. “Iehudá”, a proposta que tinha mais apoio inicialmente, foi descartada porque as fronteiras do estado bíblico com este nome caíam fora do que a partilha da ONU estabelecia para o estado judaico. Outras alternativas, como “Tsión” e “Tsábar” foram consideradas, mas ao final o nome “Israel” venceu a votação por 7 a 3. [1] A parashá desta semana, Vaishlách, nos conta a origem do nome “Israel”, que o patriarca Iaacóv recebe depois de duelar com um misterioso “homem” nas margens do rio Iabóc. Para entendermos o significado deste nome, é melhor darmos alguns passos para trás e revisitarmos a jornada que levou Iaacóv àquele lugar e àquela luta. Desde o seu nascimento e ao receber seu primeiro nome, Iaacóv foi um enganador [2]. Ele manipulou seu irmão para obter sua primogenitura [3] e recebeu a bênção de seu pai através de uma mentira. [4] Em vez de enfrentar as consequências de seus atos, Iaacóv fugiu de seus problemas com a ajuda de sua mãe. Como se isso não fosse o bastante para considerá-lo o menos nobre dos patriarcas, em sua primeira interação com Deus, depois de deixar sua casa, Iaacóv estabeleceu condições para seu compromisso com o Divino! [5] Uma vez em Aram, o destino de Iaacóv mudou lentamente, e, além de ser um enganador, também foi enganado várias vezes: especialmente, por seu sogro e tio, Laván, que lhe deu Leá como esposa em vez de Rachel; [6] Laván tentou enganá-lo novamente na divisão do gado, mas, com a ajuda de Deus e o uso de "genética prática", Iaacóv evitou ser ludibriado. Mas suas táticas lhe renderam o ódio dos filhos de Laván, e cansado do conflito, Iaacóv decidiu fugir novamente e retornar à terra de seus pais. [7] Neste ponto, Iaacóv estava começando seu processo de redefinição, mas ainda havia um longo caminho a percorrer; ele tinha tanto medo de seu encontro com seu irmão que não sabia o que fazer: por um lado, orou a Deus mostrando uma humildade que não estava presente quando ele rezou em Bethel, mas, por outro lado, tentou comprar o perdão de seu irmão, enviando-lhe presentes. Quando ele atravessou o rio Iabóc e chegou à terra de Cnaán, ele precisava de algum tempo sozinho para refletir sobre a pessoa que tinha se tornado. Ele deixou sua família de um lado do rio e voltou para o outro lado. É lá, nas margens do Iabóc, que ele viu Deus face a face. Ele viu a pessoa que se tornou, o enganador, o manipulador, alguém que não podia desenvolver relacionamentos com aqueles ao seu redor e que estava sempre fugindo em vez de enfrentar seus problemas. Ele sonhou com um “homem” que era simultaneamente um anjo, Deus e o próprio Iaacóv. Ele viu um Deus que "forma a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal” [8]. Ele finalmente entendeu seu papel, a responsabilidade de ter a escolha entre o certo e o errado. Foi um processo doloroso, pois Iaacóv teve que reconhecer todos os erros que cometeu. Ao amanhecer, uma parte dele queria acordar desse sonho, se juntar à sua família e seguir em frente, mas Iaacóv resistiu à tentação e continuou lutando consigo mesmo nesse processo de autoanálise, até sentir que era digno de todas as bênçãos que tinha recebido. Em algum momento, o "homem" perguntou seu nome e, chorando, ele respondeu "Iaacóv, o enganador", e a resposta que recebeu foi "você não precisa mais ser um enganador; seu nome será ‘Israel’, porque você lutou com Deus e consigo mesmo e se tornou uma pessoa melhor". Intrigado, Iaacóv perguntou "e quem é você para mudar meu nome?", "você não precisa perguntar, você sabe quem eu sou" foi a resposta. Iaacóv reconheceu a natureza transformadora da experiência que teve nas margens do Iabóc e nomeou o lugar “Peniel” (“face de Deus”), porque ali, pela primeira vez, teve a coragem de se olhar no espelho, e ao fazer isso, viu o rosto de Deus. Quando o Sol nasceu, encerrou uma noite muito longa na vida de Iaacóv. Quando ele foi encontrar Essáv, ele estava pronto para assumir a responsabilidade pelo relacionamento que tinha com seu irmão (ou pela falta dele). Ele liderou seu acampamento e se curvou ao chão sete vezes, indicando seu arrependimento pela forma como tinha agido, e quando encontrou Essáv, ofereceu-lhe sua bênção. Não era a bênção de seu pai que ele havia recebido no lugar de seu irmão, mas era o que Iaacóv podia oferecer a Essáv. Mas Iaacóv ainda tinha com medo e se recusou a desenvolver um relacionamento profundo com seu irmão. Assim como qualquer pessoa que já tenha passado por um profundo processo de transformação pessoal ou coletiva, a mudança de Iaacóv, “o enganador”, para Israel, “aquele que lutou consigo mesmo e com Deus”, é um processo longo e não linear. Ao longo do caminho, o antigo Iaacóv ainda aparece às vezes, exigindo esforço de Israel para manter a mudança e continuar em seu novo caminho. Também pelo nome “Israel”, o povo judeu foi instruído a sermos aqueles que duelam com Deus e com os homens, que questionam, a cada passo, a si mesmos e as autoridades estabelecidas, que rejeitam os dogmas e as verdades inquestionáveis. É um legado maravilhoso e empoderador e, ao mesmo tempo, difícil e complicado. Não raras vezes, saímos machucados deste processo, mas aprendemos que não há sentido em deixarmos de ser quem somos. Neste comentário da parashá, me despeço deste espaço. Espero que, ao longo dos quase cinco anos em que participei dele, tenha contribuído um pouco ao processo judaico de reflexão e crítica através do texto da Torá. 


[1] https://bit.ly/3R1WNiT [2] Gen. 25:26 [3] Gen. 25:29-34 [4] Gen. 27:1-40 [5] Gen. 28:20-22 [6] Gen. 29:16-26 [7] Gen. 30:25-31:3 [8] Isaías, 45:7


sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Por mais perguntas e menos certezas

(uma versão em inglês deste texto foi publicado neste blog com o título “More Questions and Fewer Certainties)


Entre a obediência imediata às ordens Divinas e a sua contestação vigorosa, Avraham apresenta modelos bastante distintos de liderança religiosa no texto da parashá desta semana, Vaierá. Quando Deus lhe revela que destruirá a cidade de Sodoma e Gomorra porque seus crimes são muito graves, Avraham questiona a conduta ética de Deus nos termos mais fortes que se pode conceber: “O Juiz de toda a terra não agirá com justiça?!” [1]. Por outro lado, quando, alguns capítulos mais tarde, Deus exige de Avraham que sacrifique “seu filho, seu único filho, aquele que você ama, Itschác” [2], nosso patriarca consente sem questionar, toma seu filho e caminha com ele até o local em que Deus havia indicado que o sacrifício deveria acontecer. Não fosse por uma intervenção Divina no último minuto, quando a faca do sacrifício já havia sido levantada, Avraham teria, de fato, seguido a instrução de Deus e dado fim à vida de seu próprio filho.

Ao longo dos séculos, as duas histórias têm sido apontadas como modelos de virtude e de comportamento religioso. Não foram poucos os comentaristas que destacaram, apontando para o episódio do quase-sacrifício de Itschac, que não apenas Avraham estava disposto a seguir a instrução Divina, mas que Itschac também estava disposto a ser sacrificado, se este era o plano de Deus. Uma devoção acima de suas vontades e necessidades pessoais era, de acordo com esta perspectiva e com as lições tiradas desta passagem bíblica, o ideal religioso a ser buscado. Se Avraham havia sido testado neste episódio, então ele foi aprovado com louvor. 

No entanto, pelo menos desde os tempos talmúdicos e apesar de tentativas das lideranças rabínicas de boicotarem este tipo de abordagem, a contestação à forma como Avraham aceita a ordem Divina de sacrificar seu próprio filho também tem feito parte de como os comentaristas abordam o quase-sacrifício de Itschac. [3] Para eles, a forma como Avraham questionou a revelação da destruição de Sodoma e Gomorra reflete uma postura mais saudável no relacionamento com a autoridade, até mesmo com a autoridade Divina. Em particular, a Avraham, considerado um iconoclasta, alguém que não deixava ídolos sem serem revirados, que não tinha medo de se colocar contra o consenso geral, essa seria uma postura mais alinhada com sua história de vida.

Eu penso nessas histórias e como elas podem se relacionar com outros modelos teológicos, não necessariamente com a Voz Divina externa que Avraham escutou e o instruiu a sair do lugar em que vivia e construir um novo lar em uma terra  que Deus lhe apontaria, mas também com a voz interna, aquela que vem da fagulha Divina em cada um. Quando damos ouvido ao que a nossa voz interna diz, quase sem fazer perguntas, e quando a questionamos de forma intensa? Quando nossas certezas são tão fortes que aceitamos suas premissas a valor de face, sem nenhum questionamento, como dogmas cuja validade é inquestionável e cujo próprio ato de aceitação se torna uma forma de devoção quase-religiosa? Quando, por outro lado, fazemos as perguntas incômodas, sem certeza de aonde elas nos levarão, com alguma trepidação de estarmos, de fato, traindo nossa voz interior e sabe-se lá mais o que no processo?

Na época das mídias sociais em que vivemos, nos definimos também pelas causas que abraçamos e pelas quais nos manifestamos de forma quase-obsessiva, algumas vezes. Repetindo o comportamento de torcidas de futebol, re-postamos os argumentos do nosso time sem questionar sua validade, passamos os olhos pelas postagens do outro time sem considerar a razão que possa existir nelas. E, como nos confrontos entre torcidas, que se tornam violentos com frequência inaceitável, nos tornamos simultaneamente abusivos e vítimas de abuso, radicalizando ainda mais as posições e as rivalidades.

Me inspira pensar na coragem que Avraham teve no seu desafio a Deus no episódio de Sodoma e Gomorra e nas lições que podemos tirar de seu exemplo. A relação dialógica com o Divino que se estabelece ali é das passagens da Torá que mais me tocam. Que possamos todos aprender com ele a ter a coragem de perguntar mais e ter menos certezas, para romper com ciclos de abuso e violência em que nossos posicionamentos algumas vezes se tornam, buscar estabelecer o diálogo, o reconhecimento da humanidade mútua, o acolhimento das dores, dos traumas, dos prazeres e das certezas que cada um de nós carrega, para estabelecermos debates mais respeitosos, compreensivos e produtivos.

Shabat Shalom! 

 

[1] Gen. 18:25 

[2] Gen. 22:1-2

[3] Veja, por exemplo, o 5º capítulo de J. Richard Middleton, “Abraham’s Silence: The Binding of Isaac, the Suffering of Job and How to Talk Back to God”.


sábado, 14 de outubro de 2023

Dvar Torá: Mantendo nossa humanidade e a deles mesmo em situação de Guerra (CIP)

[nota: Essa é a prédica mais difícil que eu já escrevi e eu peço a vocês um pouco de generosidade na reação. Todos vivemos uma semana terrível e estamos tentando fazer sentido em uma realidade absolutamente caótica. Muita gente vai discordar do que eu tenho a dizer — com sorte, alguns concordem também e possamos refletir, crescer e amadurecer juntos. Se você quiser fazer parte dessa conversa, use os comentários do blog. Comentários ofensivos, antissemitas, islamofóbicos, etc. serão removidos.]


Eu lembro exatamente onde eu estava. Tinha ido abrir uma conta no Itaú mas tinha faltado algum documento e não tinha podido abri-la. Dirigia do Brooklin, onde trabalhava e ficava a agência, até o meu apartamento em Perdizes. Liguei o rádio e falavam de um acidente terrível, no qual um avião tinha se chocado com uma das Torres Gêmeas em Nova York. Todos estavam assustados mas tratavam o assunto como uma acidente. Ainda enquanto eu dirigia, um segundo avião se chocou com a outra torre. Aí tinha ficado claro que não era acidente nenhum. Os Estados Unidos estavam sob ataque e o mundo nunca mais seria o mesmo depois daquele dia. Estar no olho do furacão da história, muitas vezes te deixa absolutamente atordoado. Cheguei em casa, liguei a TV e entrei em desespero ao assistir ao vivo e a cores a transformação do nosso mundo. Tem momentos da vida que nunca vamos esquecer…

Este último sábado teve um sentimento muito parecido. Acordei para fazer o serviço de Sh'mini Atséret, como tenho feito nos último anos. Minha prima Silvinha faleceu em Sh'mini Atséret em 2019 e, desde então, fazer este serviço é minha forma de homenageá-la. Ao acordar e olhar o celular, já tinha uma série de mensagens falando de ataques sincronizados do Hamás contra Israel por terra, ar e mar. Apesar de ser shabat, sintonizei em uma rádio israelense para escutar o que estava acontecendo e, mesmo cedo de manhã, já se falava em comunidades inteiras mantidas reféns. Pessoas estavam ligando para programas de TV e de rádio ao vivo de dentro dos quartos seguros de suas casas e contando que terroristas estavam do outro lado de suas portas reforçadas. O quadro era caótico, sabíamos que havia a chance de um imenso desastre humano, mas sua dimensão real ainda não era conhecida.

Conforme as horas foram passando, fomos escutando relatos horrendos cujos detalhes não vou repetir. Todos nós passamos a semana lendo e escutando sobre os terríveis atos perpetrados pelos terroristas, cenas inimagináveis, de uma violência e sadismo indescritíveis. Muitos de nós temos familiares e amigos ou familiares de amigos assassinados pelo terror nestas primeiras horas, mas imagino que todos nos sentimos como se as mais de 1.200 vítimas fizessem parte da nossa família expandida e nos esforçamos para aprender mais sobre as suas histórias… 

  • Debora Matias era filha de Ilan Troen, um acadêmico dos estudos sobre Israel na Universidade de Brandeis que eu conheci quando morava nos Estados Unidos. Debora e seu marido, Shlomi, se jogaram sobre o corpo de seu filho, Roten, de 16 anos, e foram ambos mortos. Pelo esforço de seus pais, Roten, apesar de ferido, sobreviveu. [1]
  • Vivian Silver era uma militante pelos Direitos Humanos. Ela serviu por muitos anos no Conselho de B’Tselem, a principal organização em defesa dos Direitos Humanos de Israel. Ela fazia parte de vários movimentos trabalhando pela paz entre israelenses e palestinos e foi nomeada pelo jornal HaAretz em 2011 como uma das 10 imigrantes de países de fala inglesa mais influentes em Israel. Ela foi sequestrada do kibutz Beeri, onde ela vivia, e seu paradeiro ainda é desconhecido. As última palavras que ela trocou com seu filho, por mensagens de texto enviadas do quarto seguro em que ela se escondia, foram “Eu te amo”. “Ela estava muito comprometida em fazer do mundo um lugar melhor e ela falhou”, ele disse ao The New York Times. [2]
  • Eyal Waldman é um bilionário israelense ligado à indústria de tecnologia, que vendeu sua empresa por US$7 bilhões em 2020 e que defendia a contratação de programadores palestinos da Cisjordânia e de Gaza. [3] Sua filha, Danielle e seu namorado, Noam, tinham acabado de contar a Eyal que eles iam se casar, depois de terem mobiliado e se mudado para um novo apartamento. Danielle e Noam estavam no festival de música eletrônica Supernova e foram ambos emboscados e assassinados. [4]

Para qualquer pessoa minimamente sensível, estas histórias deveriam causar choque e consternação. Estas não eram pessoas que oprimiam palestinos — pelo contrário, cada um ao seu modo, eles estavam todos envolvidos na construção de pontes, na melhoria das condições de vida da população palestina. Pessoas assassinadas ou sequestradas de forma brutal e covarde, sem chance alguma de defesa, simplesmente por viverem onde viviam e por estar onde estavam.

Para quem acompanhou os eventos desta última semana daqui do Brasil, foram dois choques. O primeiro foi o choque do ataque em si, pela sua estupidez, pelo assassinato de bebês, de crianças, de pessoas idosas; pelo estupro e outras violências cometidas contra populações civis; pela forma irreverente como os terroristas trataram esses atos, divulgando-os nas redes sociais e se gabando deles para quem quisesse prestar atenção.

O segundo choque foi causado pela forma como esses atos foram recebidos mundo afora. Não foram raras as lideranças na política e nos movimentos sociais no Brasil e em outras partes do mundo que celebraram os atos terroristas como iniciativas genuínas de libertação nacional. Pessoas que até a semana passada admirávamos, de quem éramos amigos; pessoas com quem marchamos juntos pelos direitos humanos, contra o racismo, pela democracia, contra o feminicídio, contra a LGBTQIAP+ fobia. Pessoas que, apesar de se manifestarem por todas essas pautas ao nosso lado no Brasil, decidiram apoiar o Hamás, um grupo fundamentalista, que envia homens homossexuais à cadeia por 10 anos [5],  que limita o acesso de mulheres que buscam a Justiça contra casos de violência doméstica, que apela à tortura como estratégia de investigação e onde opositores do regime desaparecem. [6] Contra Israel e contra judeus, as piores formas de violência passaram a ser consideradas estratégias legítimas de resistência. 

Para ser justo, também tivemos muitas lideranças que adotaram um tom bastante crítico com relação aos atos terroristas, tanto no mundo da política quanto no dos movimentos sociais.

Nesse cenário de terra arrasada, de nos sentirmos fragilizados pela violência e abandonados pelos nossos companheiros de luta, o maior risco é cedermos ao desespero e abrirmos mão daquilo que temos de mais valioso: nossa humanidade, nossos valores e nossa conduta moral. Quando sofremos o tipo de ataque que Israel sofreu no último final de semana, com esse nível de brutalidade e de terror, nada mais natural do que querermos causar a mesma dor ao outro lado, garantir que eles saibam que nossa dor não será em vão, que haverá um preço muito alto a ser pago. Em alguns grupos judaicos aos quais eu pertenço, o desejo de vingança, qualquer que seja o preço, é paupável. De alguma forma, essa foi a resposta norte-americana aos atentados de 11 de setembro — e vejam onde estamos hoje: o Taleban de volta ao poder, o sentimento global antiamericano em recordes históricos, o estilo de vida americano mais ameaçado do que jamais esteve. Como um analista israelense disse na rádio naquela manhã de sábado: “a vingança não é um plano de ação.”

Hoje de manhã, ao recitarmos a benção Iotser Or, que faz parte da liturgia diária da manhã, eu mencionei que ela é baseada em um versículo no livro de Isaías, capítulo 45, no qual Deus se apresenta a Ciro, imperador da Persia, que tinha conquistado o Império Babilônico. “Eu sou ה׳ e não há nada mais. Não há outros deuses além de Mim. Eu te empodero, ainda que você não Me conheça. Para que todos saibam, do leste ao oeste, que não há nada além de Mim, eu sou ה׳ e não há outros. [Eu] produzo a luz e crio a escuridão, faço a paz e crio o mal.” É esta última frase que foi parafraseada na brachá que dizemos todas as manhãs. Como dizia uma professora querida, a rabina Rachel Adler, é um ato corajoso reconhecer Deus como a fonte do mal, mas agradecer por isso toda manhã é pedir demais e os Rabinos trocaram a palavra “mal” por “tudo” e a benção ficou: “produzo a luz e crio a escuridão, faço a paz e crio tudo.” Nossa parashá desta semana, Bereshit, nos ensina que somos, TODO ser humano, criados à imagem Divina, com o potencial para decidir nosso caminho. Dessa forma, precisamos, cada um de nós, escolher a cada manhã entre a luz e a escuridão, entre o bem e o mal. 

O Hamás fez suas escolhas e decidiu negar a humanidade de israelenses e de judeus para poder cometer as atrocidades que cometeu. Responder à violência inconcebível do Hamás abrindo mão da nossa humanidade e da deles seria permitir que eles tivessem o maior triunfo nessa disputa.

Da mesma forma, temos visto a humanidade de judeus e de israelenses colocadas em cheque por quem apoia, daqui do Brasil, as ações de terror cometidas em nome da libertação nacional palestina, ainda que não avance nem um milímetro essa causa. Um jornalista, recorrendo à imagem nazista do judeu como rato, citou um ditado chinês para justificar os atos terroristas, dizendo “não importa a cor dos gatos, desde que cacem ratos.” [7] Novamente, nossa humanidade foi descartada para legitimar a violência de que fomos vítimas. 

Frente ao abandono que temos sentido por parte de nossos antigos aliados nas causas humanistas no Brasil, podemos nos sentir tentados a nos retirar desses movimentos, mas é importante lembrar que não nos manifestamos contra o racismo, só para dar um exemplo, esperando apoio a causas judaicas quando precisássemos, mas porque consideramos verdadeiramente que o racismo é um pecado que precisa ser extirpado da cultura brasileira, assim como o machismo, os preconceito por identidade de gênero e sexual e outras formas de violência. 

Hoje eu conversei com o Marcelo Semiatzh, sócio da CIP cuja tia e primos viviam no kibutz Kissufim, ao lado da faixa de Gaza, e que foram assassinados neste final de semana. Eram pessoas carinhosas e bem humoradas. Sua tia Gina, aos 90 anos, pedia para ele levar cachaça quando fosse para Israel para ela poder fazer caipirinha. O primo Itzchák desenvolvia projetos conjuntos com os palestinos de Gaza até a ascensão do Hamás. Marcelo me falou de como é difícil alguém defender os direitos humanos quando a tia que ele tinha como mãe foi assassinada com a brutalidade que foi. “A raiva estava tomando conta de mim”, ele me disse. “Mas eu sou o que eu sou e não vou ficar vivendo em função do ódio do outro.” 

Nos mantermos quem somos e não permitir que sejamos definidos pelo  ódio ou pelo Hamás é o maior desafio que temos nesse momento. Que possamos todos escolher a luz e não a escuridão; a paz e não o mal. Que possamos nos defender, como é nossa obrigação, sem nos tornarmos a cópia daquilo que combatemos.

 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Bebendo na fonte judaica dos Direitos Humanos

(uma versão em inglês deste texto foi publicado neste blog com o título “In the Divine Image: Judaism's Foundation for Human Rights)


Foi John Locke quem primeiro definiu o conceito de “Direitos Humanos”, uma série de proteções fundamentais aos quais todos os seres humanos teriam direito. Ainda que o termo em hebraico “זכויות האדם”, “z’chuiot haadam”, seja ainda mais recente para designar essa ideia, o judaísmo já desenvolvia a ideia da dignidade inalienável de todo ser humano muito antes de John Locke formular sua teoria.

Na perspectiva clássica judaica, a criação do ser humano “à imagem Divina”,  uma ideia desenvolvida na parashá desta semana, Bereshit, baseia o conceito de que toda figura humana é dotada de dignidade e merecedora de respeito. Nahum Sarna afirma que “a semelhança do homem com Deus revela o valor infinito de um ser-humano e afirma a inviolabilidade da pessoa humana.” [1] O mesmo autor destaca que em outras culturas não era incomum que o rei fosse considerado criado “à imagem Divina” mas que é só na tradição judaica que essa ideia é universalizada, tornando todo ser humano um reflexo da imagem de Deus. O conceito, que poderia ter se mantido como uma curiosidade interessante mas sem aplicação prática, ganha implementação concreta já na próxima parashá, Noach, quando, após o Dilúvio, Deus proíbe o assassinato, afirmando que “quem derrama o sangue de uma pessoa, terá o seu próprio sangue derramado por outra pessoa porque a humanidade foi feita à imagem de Deus.” [2] 

Esse fato, isoladamente, já garantiria a centralidade destes textos na construção de uma visão judaica dos Direitos Humanos. De fato, na tradição rabínica, a expressão “בצלם אלוהים”, “b’tselem Elohim”, “à imagem Divina” é usada para se referir a conceitos que, mas tarde, passariam a ser incluídos na definição de “Direitos Humanos”.

No entanto, há uma dimensão adicional na parashá desta semana que não é capturada meramente pela ideia da criação à imagem de Deus. Durante o processo de Criação, toda vez que Deus produz uma nova espécie de seres vivos, expande a categoria através da expressão “למינהו”, l’minehu, “cada um conforme sua espécie”. Assim é com a vegetação, plantas com sementes, árvores frutíferas, grandes monstros marinhos, todos os seres vivos que restejam e que preenchem as águas, animais domésticos, seres rastejantes e animais silvestres. Quando Deus criou adám, o primeiro ser-humano, no entanto, a expressão “cada um conforme sua espécie” não foi utilizada. Nossos sábios entenderam que a ausência desta expressão indicava que a humanidade toda pertencia à mesma espécie, ainda que apresentássemos características físicas distintas.

Um midrash, percebendo que pessoas nascidas em diferentes partes do Globo tinham cor da pele distinta,  conta que, ao criar o primeiro ser-humano, Deus buscou terras de cores distintas dos quatro cantos da Terra. Dessa forma, quando uma pessoa morresse, a terra do lugar não poderia lhe dizer “volta para o lugar de onde você veio, já que a sua terra não pertence a este lugar.  “Ao contrário”, diz este midrash. “O ser humano pertence a todo lugar aonde for e para lá ele pode voltar.” [4] Que manifestação potente de uma visão de mundo que reconhece a humanidade de toda pessoa e a dignidade do estrangeiro onde quer que ele se encontre!

Hoje em dia, no entanto, não são poucos os círculos nos quais a ideia de Direitos Humanos é apresentada em oposição a uma visão de mundo baseada em valores bíblicos, nos quais o racismo e o preconceito recebem validade religiosa. Que neste primeiro shabat do ciclo de leituras da Torá de 5784, possamos recuperar perspectivas religiosas judaicas profundamente comprometidas com a dignidade de todo ser humano e nos comprometer com políticas públicas que dêem expressão a este valor.

Shabat Shalom,


 

Rabino Rogério

[1] Nahum Sarna, “The JPS Torah Commentary: Genesis”, p. 12.

[2] Gen. 9:6

[3] Gen. 1:11, 21, 24-25.

[4] Yalkut Shimoni, Bereshit 1:13 


sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Dvar Torá: Quando a Sucá serve de ponte para o mundo que nos cerca



Outro dia eu estava conversando com uma amiga que adora fazer trilhas e falávamos de subir um morro de onde, todos dizem, é lindo ver o nascer do Sol. “Mas eu quero dormir em uma cama de verdade”, eu disse. “Topo acordar de madrugada e fazer a trilha no escuro, mas durmo em uma pousada perto do morro. Já passei da idade de dormir em barraca”. Minha amiga, como eu disse tem uma pegada trilheira mais raiz e discordou radicalmente de mim: “prefiro dormir na barraca e ganhar essa hora de sono que vc vai gastar fazendo a trilha antes do nascer do Sol. Nos encontramos lá em cima.”

Tem gente para quem dormir na barraca é um prazer ou um pequeno preço a pagar pra poder estar na trilha. Quando a trilha é maravilhosa e justifica, eu até topo dormir uma noite ou duas na barraca, mas é sempre a última opção, quando não tem jeito nenhum de parar em uma pousada e passar a noite na cama, debaixo de um teto sólido e sem risco de me molhar se chover, que me proteja do vento e das outras condições da natureza.

Meus filhos, por outro lado, adoravam brincar de barracas. Quando eu me mudei há dez anos, e a casa ficou cheia de caixas, eles adoravam brincar que as caixas eram suas barracas e de montar grandes estruturas com elas. Estruturas com as quais precisávamos tomar muito cuidado para que um vento mais forte não destruísse um cidade de caixas inteira! Um pouco mais velhos, eles gostavam de desmontar as almofadas do sofá e montar suas barracas improvisadas no meio da sala ou de montar uma barraca na cama com os lençóis e ler a história de boa noite à luz de lanternas.

Sucot, que começa hoje, nos convida a fazermos a transição entre a vida protegida das nossas construções de alvenaria e a maior integração com os elementos da natureza representada pela vida nas barracas e nas cabanas nas quais vivemos durante os 40 anos da jornada entre a libertação da servidão e nossa chegada à Terra Prometida. Depois de termos passado Rosh haShaná e Iom Kipur em processos de introspecção profunda, olhando muito para dentro de nós mesmos, Sucot nos traz de volta à realidade concreta e à nossa relação com o lugar em que vivemos.

Há alguns anos, fui a uma exposição no Museu de Arte Contemporânea na qual uma instalação nos convidava a uma transição ainda mais radical. Começávamos em uma sala, bem construída, com todos os elementos de qualidade. conforme íamos caminhando, alguns elementos iam sendo substituídos por improvisos. O forro não existia demais e víamos direto as telhas, a parede deixava de ter massa corrida, o piso passava a ser só cimentado (e não era o cimento queimado, chique hoje em dia). As coisas iam piorando, as paredes passavam a ser feitas de compensado, as condições de habitação iam todas ficando deterioradas, como vemos nas favelas das nossas grandes cidades. Com o tempo, a casa ia sumindo e se transformando em um emaranhado de raízes, um labirinto do qual precisávamos escapar. Se a exposição ainda estivesse em cartaz, seria uma excelente vivência para Sucot. Ela nos cutucava em duas direções: a segurança que sentimos nas construções em que vivemos não é tão universal quanto gostamos de pensar e ela nos afasta de uma relação mais harmoniosa com os elementos da natureza que, com alguma frequência, nos demonstram que não estão satisfeitos com a forma como tratamos e abusamos do meio ambiente. No mundo todo, as mortes e destruições causados por eventos climáticos extremos — inundações, ciclones, secas — tem batidos recordes históricos e colocam em cheque a ideia de que nossas construções nos protegem do que acontece do lado de lá das nossas paredes.

O rabino Art Green, expressou essa ideia da seguinte forma:

Sucot é um momento para reconhecer que hoje nosso planeta, incluindo todas as suas colheitas futuras e todas as nossas gerações subsequentes, está sob terrível ameaça, em grande parte causada pela cegueira intencional e irresponsável da sociedade em que vivemos, especialmente por nossos chamados líderes. Diante do que está por vir, as belas casas que construímos para nós mesmos nos protegerão ainda menos do que as frágeis sukot nos nossos quintais. Como amantes do mundo criado por Deus, não podemos ser espectadores culpados pela sua destruição desenfreada por forças de ganância humana. Em tempos como esses, nossa reunião ao redor do mesa de Sucot deve incluir um elemento de planejamento estratégico junto com a comemoração. (…) Pense em Rabi Akiva e seus amigos sentando ao redor da mesa do seder de Pessach. Será que eles estavam, como muitos têm argumentado, planejando a revolta de Bar Kochbá? Como nós podemos, seguindo o chamado de Deus para a nossa geração, nos tornarmos revolucionários de Sucot? [1]

Diz a lei judaica que o schach, o teto da Sucá, deve criar sombra suficiente para cobrir metade do chão e, ao mesmo tempo, vazado o suficiente para podermos ver as estrelas através dele. Dessa forma, a Sucá permite, muito melhor que nossas casas permanentes, estarmos em contato com a natureza, com a chuva que sempre cai nessa época do ano, com os efeitos da temperatura elevada, com a poluição… Além disso, a lei estabelece que a Sucá precisa ter apenas duas paredes e meia, e assim ela se mantém mais aberta à cidade do que nossos prédios e edifícios (claro que isso fica bem menos relevante quando a Sucá está atrás dos muros ou das grades dos lugares em que vivemos), para que possamos perceber de que forma o resto da cidade vive e possamos desenvolver, além da empatia, vontade política para transformar essa realidade, entendendo de que forma a falta de uma habitação digna impacta o senso de dignidade de nossos co-cidadãos.

Passados quarenta anos, uma nova geração estava pronta para chegar à Terra de Israel e mudar sua conduta, atuando como um povo pronto para assumir suas responsabilidades na construção de uma nação baseada nos valores da Torá, na proteção às viúvas, aos órfãos e aos estrangeiros. Será que nós estamos dispostos a uma mudança similar de mentalidade, deixando de contemplar, cada um, apenas seus interesses pessoais imediatos e pensando nas nossas cidades, em suas construções e na forma como vivemos, de forma estratégica, em harmonia com o meio ambiente e considerando as mudanças climáticas que já estão em curso?

Que ao longo dos próximos 7 dias de Sucot possamos todos pensar em como transformamos nossa conduta pessoal e comunitária para dar resposta aos desafios que Sucot nos traz à tona. 

 

[1] Arthur Green, Judaism for the World: Reflections on God, Life and Love (posição 269/718 no ebook)

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Dvar Torá: Lendo nosso Livro da Vida a tempo de poder mudá-lo. Iom Kipur 5784 (CIP)

(versões em inglês deste texto foram publicadas neste blog com os títulos “Reading our book of life in time to change it” and "Their Story in Our Book of Life")




Meu pai trabalhou praticamente toda a sua vida profissional na mesma construtora. Em uma época sem smartphones e sem computadores de alta resolução, ele tinha um instrumento que ajudava as pessoas a terem uma ideia de como um azulejo de que tinham gostado ficaria quando colocado múltiplas vezes na parede. Eram quatro espelhos articulados, que “envelopavam” o azulejo, criando a sensação de um fundo infinito naquele padrão.

Hoje, com óculos de realidade virtual, os grandes projetos nos oferecem a possibilidade de entrarmos em construções que ainda nem saíram da fase de projetos e ter a sensação de que estamos fisicamente naquela construção.

A tradição judaica, com muito menos tecnologia, há séculos desenvolve estratégias para nos fazer vivenciar situações diferentes daquelas da nossa rotina. O Shabat, por exemplo, é considerado “טַעַם שֶׁל עוֹלָם הַבָּא”, “um tira-gosto do mundo vindouro”. Nele, vivemos 25 horas como se o mundo fosse perfeito. Iom Kipur, por outro lado, é considerado um ensaio da nossa própria morte: vestimos o kitel, como se fosse os tachrichim, as vestes com que somos enterrados; não fazemos muitas das ações que caracterizam o pertencimento ao reino dos vivos, não comemos nem bebemos, não fazemos sexo e evitamos outras atividades que nos dão prazer; recitamos o vidui, a confissão das nossas transgressões, da mesma forma que devemos fazer antes de morrermos.

A experiência de vivermos no Shabat 25 horas como se o mundo perfeito fosse nos inspira a trabalhar para tornar esse ideal uma realidade quando retomamos a experiência da semana no sábado à noite. Ao vivenciarmos Iom Kipur como um ensaio da nossa morte, somos convidados, paradoxalmente, a considerar o que mais valorizamos nas nossas vidas. O rabino Alan Lew expressa este conceito da seguinte forma:


Isso é o que Iom Kipur nos pergunta hoje: Qual é o elemento central da nossa vida? Estamos vivendo de acordo com ele? Estamos nos movendo em direção a ele?

Não devemos esperar até o momento da nossa morte para buscar as respostas. No momento da morte, pode não haver nada que possamos fazer sobre isso, a não ser sentir arrependimento. Mas se buscarmos as respostas agora, podemos agir no próximo ano para nos aproximarmos do nosso elemento central. Esta é a única vida que temos, e todos nós a perderemos. Ninguém sai vivo, mas perder com nobreza é uma coisa linda. Conhecer o elemento central do nosso ser é ir além de vencer e perder. [1]


Poder caminhar por uma casa antes da sua construção começar pode nos dar o estímulo que precisávamos para dar o sinal verde ao projeto; vivenciar o mundo como se já tivéssemos resolvido todas as suas mazelas pode nos dar a força para resolver o que estiver ao nosso alcance; imaginar que estamos próximos ao final da nossa vida nos permite valorizar seus aspectos mais importantes, enxergando além da neblina do dia-a-dia, que limita nossas perspectivas frequentemente. Pagar o condomínio, levar as roupas no tintureiro, fazer a apresentação do projeto em que você passou os últimos dois meses trabalhando, estudar para a prova da qual depende a sua média anual — todas atividades importantes, mas que não constituem quem somos e qual nosso papel no mundo. E, mesmo assim, muitas vezes permitimos que elas fiquem com a maior e melhor parte da nossa atenção.

E se conseguíssemos ganhar uma perspectiva ainda mais ampla das nossas vidas? Se conseguíssemos, por exemplo, acessar o Livro da Vida sobre o qual tanto falamos em Rosh haShaná e em Iom Kipur? Se Deus saísse da sala por uns minutos e nós pudéssemos ler tudo o que está escrito a nosso respeito, como nascemos e como vamos morrer, nossos maiores amores e as grandes decepções. Como será que isso mudaria as nossas condutas na vida?

Em Sucot do ano passado, eu assisti um filme e pensei: “esse será o tema da minha próxima prédica de Izcór”. O filme era baseado no conto “História da Sua Vida”, de Ted Chiang [2], e, ainda que o autor não seja judeu, eu percebi muitas similaridades nos conceitos desenvolvidos pelo conto e as metáforas das Grandes Festas, em particular a do Livro da Vida. A história é sobre a chegada de naves extraterrestres em vários pontos da Terra. Uma linguista é convocada para estabelecer formas de comunicação com os alienígenas e, aos poucos, vai entendendo que essa civilização tem uma forma não linear de lidar com o tempo, algo que temos dificuldade até de conceber.

O tempo, de alguma forma, tem um ritmo fixo para nós. A cada um segundo o ponteiro pequeno se mexe e não há nada que possamos fazer para voltá-lo para trás ou acelerá-lo. É como se o filme das nossas vidas acontecesse no cinema, onde não podemos parar o vídeo para ir ao banheiro nem acelerar uma cena violenta que não queremos assistir. Mas,  e se a nossa vida fosse como um livro de contos, que podemos abrir em qualquer página e sair lendo? Primeiro nosso casamento, depois a nossa adolescência, depois os detalhes do nosso nascimento… Imagine se pudéssemos ver até mesmo a forma como iremos morrer!

É isso que a linguista do filme aprende com os alienígenas — ela passa a ser capaz de ler a sua própria vida como se fosse um livro de histórias, interconectadas, mas também independentes entre si. Se você tivesse esse poder, como isso mudaria a sua vida?

No filme e no conto, ela consegue ver que se casará com um homem a quem ainda nem beijou e de quem se separará alguns anos depois. A filha deles terá uma doença rara para a qual não existe cura e irá morrer muito jovem. E, mesmo sabendo de tudo isso…. ela decide se envolver emocionalmente com ele e decide ter a filha. E os ama como se não soubesse como as coisas terminariam. Se você soubesse das dores envolvidas na sua vida, tomaria as mesmas decisões? 

Em alguns cenários, é mais fácil responder esta pergunta: eu não daria o passo em falso que me fez torcer o pé no ano passado, eu tentaria controlar meu temperamento, especialmente em algumas broncas que dei nos meus filhos. A questão é muito mais complexa quando envolve situações que misturam muita felicidade e muita tristeza, como a relação da protagonista do filme com sua filha… Você começaria o relacionamento  com aquele namorado sabendo que irá se apaixonar loucamente e será muito feliz mas que ele vai quebrar teu coração quando tudo terminar? Aceitaria o emprego onde conseguirá se realizar profundamente mas que também te causará algumas das maiores decepções que você já teve?

Eu perguntei para uma amiga muito querida, que foi muito próxima do avô e que sofreu muito quando ele faleceu há alguns anos, se, sabendo o tamanho da dor, ela voltaria a ter sido tão próxima dele como foi. “Com certeza”, ela me respondeu e continuou, “só sofre quem vive”. Na mensagem seguinte, emendou: “só sofre quem vive a felicidade”.

Vivemos em uma época na qual muitas vezes nos deixamos ser conduzidos pelos nossos medos, em particular pela aversão à dor. Nas nossas decisões pessoais e naquelas que tomamos pelos outros, evitar a falha e o sofrimento passaram a ter um papel central que antes não tinham. Vejo amigos que aprontavam um monte na sua adolescência, com o consentimento explícito ou tácito dos seus pais, que hoje não permitem que seus filhos saiam na rua ou andem de transporte público, que pratiquem um esporte mais físico, por medo do que lhes pode acontecer. Se soubessem com antecedência que um relacionamento pessoal ou profissional seria cheio de emoções, com muitas alegrias mas com um final trágico, imagino que muitos entre nós escolheríamos não embarcar nele e assim abriríamos mão de tudo de bom que poderia ter acontecido.

E, assim, para evitar o sofrimento, vamos escolhendo o caminho da mediocridade afetiva, não nos envolvemos por medo do sofrimento. A grande surpresa de “A História da Sua Vida” é quando nos damos conta de que a linguista sabia do final trágico da filha antes mesmo de engravidar e que decide ter a filha mesmo assim. Se estivesse no lugar dela, como você teria agido? Se soubesse que um casamento te traria felicidade por 20 anos mas que terminaria em divórcio, decidiria se casar?

Daqui a pouco, vamos dar início ao serviço de Izcor, nos qual relembramos e homenageamos pessoas centrais nas nossas vidas, que nos ajudaram a nos tornarmos quem somos e cuja perda sentimos profundamente. Podemos focar na perda e na falta que sentimos deles — e, às vezes, esse sentimento é inevitável — mas me parece que ganhamos mais quando focamos na luz que eles trouxeram às nossas vidas, nos bons momentos que passamos juntos e nos valores que eles nos inspiraram. 

Se pudéssemos ler nosso Livro da Vida, que papel eles teriam? Se soubéssemos enquanto eles estavam em vida o que sabemos hoje, de que forma teríamos mudado nosso relacionamento com eles?

E, talvez, a pergunta mais importante e mais difícil de responder: sabendo de que forma essas pessoas tocaram nossas vidas e reconhecendo, em Iom Kipur, que as nossas vidas um dia também chegarão ao fim, de que forma podemos mudá-las daqui pra frente para honrar a memória daqueles que nos influenciaram e a vida daqueles que continuarão com os seus desafios mesmo depois de nós termos partido?

Que a luz das suas almas continue iluminando nossos caminhos, nos inspirando e nos oferendo conforto. Que suas presenças sejam sentidas em nossos momentos mais alegres e naqueles em que mais precisamos do seu apoio.

Gmar Chatimá Tová!


 

[1] Alan Lew, This is Real and You Are Completely Unprepared, p. 230.

[2] Ted Chiang, “História da sua vida e outros contos”. O filme no Netflix está aqui: https://www.netflix.com/br-en/title/80117799 


domingo, 17 de setembro de 2023

Dvar Torá: Confortando quem está perturbado; perturbando quem está confortável. Rosh haShaná 5784 (CIP)

 

Esses dias saiu na imprensa que a prefeitura quer desativar sua rede de trólebus, que custa demais para ser mantida, com uma frota bastante reduzida [1]. Eu ainda lembro de quando ia de Higienópolis para a Hebraica de trólebus, que eu pegava na rua Augusta, não muito longe daqui — e já naquele tempo a viagem, muito mais silenciosa que em um ônibus normal, era muitas vezes interrompida porque as hastes do veículo se soltavam dos cabos elétricos. Meus filhos adolescentes não têm ideia do que seja trólebus e a verdade é que mesmo de ônibus e de metrô eles andaram muito menos do que eu tinha na idade deles… mas essa é a dinâmica do progresso. O mundo vai mudando e nem sempre as novas gerações entendem como tudo funcionava em outros tempos. Quando eu comecei a andar de ônibus para voltar da escola, no começo da minha adolescência, já não circulavam mais os bondes, por exemplo. Hoje, talvez, os cariocas vivam o renascimento do bonde, rebatizado de VLT, Veículo Leve sobre Trilhos, mas eu prefiro chamá-lo pelo seu nome original. De onde veio a palavra “bonde”, que em nada se relaciona à forma como esse veículo é chamado em outras línguas? Diz a lenda [2] que na década de 1870, esse tipo de veículo era puxado por animais, levava 30 pessoas e era chamado de “Carril de Ferro”. A passagem custava um quinto do valor da menor moeda em circulação, então a empresa vendia 5 bilhetes por uma moeda. Esses bilhetes foram chamados de “bonds” e, no uso cotidiano, o veículo começou a ser chamado de “bonde”. 

Não são raras as situações em que traduções erradas acabam se estabelecendo em um idioma. Temos um exemplo desses na liturgia de Rosh haShaná. A Mishná, o primeiro documento escrito pelo movimento rabínico ao redor de 220 EC, estabelece que há 4 dias de julgamento no calendário: em três deles são definidas a fartura dos grãos, das frutas e da água para o ano seguinte. Sobre Rosh haShaná, a quarta data da lista, está escrito: 

Em Rosh haShaná, todos que vieram ao mundo passam na frente de Deus “ki-vnei Maron”, como está escrito: “Quem cria junto seus corações, quem considera todas as suas ações?”. [3]

Como vocês viram, eu escolhi não traduzir “ki-vnei Maron”. Em casa, eu tenho duas edições da Mishná comentadas — uma delas [4] explica a expressão seguindo a opinião do Talmud, de que em aramaico “maron” está associado à palavra para ovelhas e que, portanto, nos apresentamos a Deus como ovelhas passam em frente ao seu pastor. A segunda edição da Mishná [5] propõe uma tradução radicalmente diferente, segundo a qual “ki-vnei maron”, grafado como duas palavras distintas, é um erro de transcrição. A palavra correta deveria ser “ke-numeron”, em latim: como tropas de um exército se apresentam ao seu comandante. A diferença, ainda que sutil, tem impacto na forma como entendemos esse dia do Julgamento.

Eu percebo que há pelo menos duas maneiras através das quais as pessoas que prestam alguma atenção à liturgia encaram esse processo de t’shuvá, e nem sempre me parece que a maneira que cada um adota é a mais adequada para sua situação. Há um ditado chassídico, atribuído ao rabino Simcha Bonim de Pshischa, de acordo com o qual cada um de nós deveria andar com dois bilhetinhos, cada um colocado em um bolso. Em um bilhete está escrito “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa” [6] e no outro bilhete está escrito: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas” [7]. E o rabino advertia: “Muitos se enganam e usam o bolso invertido daquele que precisavam usar.” [8] Ou seja: quando seu ego está expandido, usam o bilhete que lhes atribui ainda mais importância e quando estão se sentindo para baixo, usam o bilhete que os deixam ainda mais deprimidos. Eu temo que, para muitos entre nós a ideia do julgamento em Rosh haShaná tenha um efeito parecido ao bilhete do bolso errado. Para alguns, já no fundo do poço, enxergar-se como ovelhas indefesas passando em frente ao seu pastor os deixa ainda mais desempoderados para serem agentes das mudanças que precisam fazer em suas vidas; para outros, se sentindo no topo do mundo, enxergar-se como poderosas tropas militares fortalece seu senso de arrogância e de que nada poderá detê-los

O Unetanê Tokef, que cantaremos daqui a pouco, tenta buscar uma conciliação entre as duas versões. De um lado, o texto toma “bnei maron” como querendo dizer “um rebanho de ovelhas”, seguindo a tradição do Talmud ao afirmar: “E todos os que peregrinam pelo mundo passam diante de Ti como ‘bnei maron’. Como o pastor vistoria-o, passa-o sob sua vara, assim Você também fará passar, contará e enumerará e considerará a alma de todo ser vivo, determinando o destino de cada criatura e escrevendo seu veredito.” De outro lado, o poema também faz alusão à formação militar quando diz “anjos se apressarão, temor e tremor os dominarão. E dirão: eis que chegou o Dia do Julgamento, quando até o exército celestial se apresenta em juízo.”

Para mim, a parte mais sombria do Unetanê Tokef, ainda mais difícil do que aquela que detalha os tipos de mortes que as pessoas podem sofrer, é quando o texto diz que Deus será Juiz, Procurador, Perito e Testemunha. É uma cena que me lembra profundamente o livro “O Processo” de Franz Kafka, no qual o personagem acorda um dia perseguido pela polícia e processado por um crime que ele não sabe qual é, em um sistema judiciário todo organizado contra ele. Ao ler esta passagem do Unetanê Tokef, sempre imagino Josef K., o personagem central do livro, perguntando por qual crime está sendo processado, e o Juiz, que também é procurador, perito e testemunha, lhe respondendo “Você sabe muito bem o que fez.”

A verdade é que sabemos muito bem o que fizemos neste ano que terminou, bem até demais. Eu sei que falo em nome de muitos quando digo que “não tá fácil”. As estatísticas dizem que mais de um quarto da população brasileira sofre de ansiedade e que um em cada oito já teve diagnóstico para depressão. De forma crescente, esse quadro de saúde mental, especialmente a depressão, pode levar a consequências trágicas: dados do SUS mostram que o número de mortes por lesões autoprovocadas dobrou nos últimos 20 anos. [9]

Vivemos em ambientes hiper-competitivos, tanto no âmbito pessoal quanto na esfera profissional — nada menos do que a excelência é aceitável. Uma falha gera uma cobrança, não uma reação empática — e assim aprendemos que não somos bons o suficientes, que nosso trabalho e nossa conduta não correspondem àquilo que é esperado de nós. Nos sentimos avaliados e julgados o tempo todo.

Nessas situações, não é produtiva a figura de um juiz-procurador-perito-testemunha que nos jogue ainda mais fundo no corredor kafkiano de um processo pré-definido contra nós. Aqui, precisamos de um pastor que nos pegue no colo, que reconheça que temos tentado, que nos ajude a encontrar o caminho novamente e a sair do buraco em que nos encontramos. 

Na minha prédica favorita, a rabina Margaret Moers Wenig apresenta Deus como uma mulher idosa esperando que seus filhos a venham visitar. [10] Evitamos essa visita por medo da decepção: da nossa decepção em entender que Deus não nos deu todo aquilo que esperávamos e achávamos que merecíamos e a decepção de Deus, ao perceber que não nos tornamos tudo aquilo que poderíamos. E, mesmo assim, Ela espera nossa visita e nos acolheria e enxugaria nossas lágrimas, não como juíza-procuradora-perita-testemunha, mas como mãe ou como pai que vê seu filho ou sua filha sofrendo.

Se você se vê hoje um pouco nesse lugar, adote então esse como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa”, e quando todas as cartas parecerem pré-definidas contra você, deixe de lado as imagens da corte e do julgamento e foque no carinho do pastor ou da mãe idosa sentada na cadeira da cozinha esperando por uma visita sua.

Do outro lado do espectro, há aqueles se veem, não apenas como réus neste processo, mas também se auto-atribuem os papéis de juiz, procurador, perito e testemunha e na fusão de todas essas funções, se auto-concedem um passe-livre para não avaliarem suas condutas, para continuarem agindo no mundo como se ele tivesse sido criado só por causa deles. São capazes de apontar para inúmeros problemas pelos quais passamos mas nunca de aceitar que tem alguma responsabilidade por eles. 

Um pequeno exemplo disso: em uma pesquisa publicada recentemente 81% dos entrevistados declararam que o Brasil é um país racista e, no entanto, 75% das pessoas discordaram completamente da frase “tenho algumas atitudes e práticas consideradas racistas”. [11] O problema são sempre os outros!

Nas palavras da poetisa Marcia Falk, t’shuvá é o processo “de nos voltarmos para dentro para encarar a nós mesmos.” [12] Em Rosh haShaná temos a oportunidade para olharmos com verdade e coragem para dentro de nós mesmos, mas quantos entre nós não evita essa possibilidade a todo custo, talvez com medo do que encontremos se realmente nos engajássemos neste processo.

Um midrash detalha, hora a hora, a criação do primeiro ser humano, no verdadeiro יום הרת עולם, no dia do nascimento do mundo:

“(…) na primeira hora, [a criação do ser humano] surgiu em pensamento; na segunda, [Deus] consultou os anjos; na terceira, [Deus] juntou sua terra; na quarta, [Deus] a amassou; na quinta, [Deus] o teceu; na sexta, [Deus] fez uma forma; na sétima, [Deus] soprou nela; na oitava, [Deus] o colocou no Jardim [do Éden]; na nona, ele foi ordenado [sobre o fruto proibido]; na décima, ele transgrediu; na décima primeira, ele foi julgado; na décima segunda, ele foi perdoado. [Deus] disse a Adam: “Este é um sinal para os seus filhos: da mesma forma que você esteve diante de Mim no julgamento neste dia e foi perdoado, também no futuro seus filhos se apresentarão diante de mim em julgamento neste dia e serão perdoados por Mim.” [13]

De acordo com esse midrash, o julgamento perante o qual nos apresentamos em Rosh haShaná é um jogo de cartas marcadas a nosso favor, tendo em vista que Deus já se comprometeu com Adám que seremos perdoados ao seu final.

Apresentados com essa possibilidade, há quem se declare inocente antes mesmo de avaliar as evidências e perdem a possibilidade de um encontro verdadeiro consigo mesmo.

Se esse é o seu caso, adote como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas”, e leia-o quando tiver a sensação de que o mundo inteiro está ao seu dispor, que você não precisa lidar com as consequências das suas decisões e dos seus atos.

Um ditado atribuído ao mexicano Cesar Cruz diz que “a Arte deve trazer conforto àqueles que estão perturbados e perturbar aqueles que estão confortáveis” e líderes religiosos já disseram antes de mim que este deve ser também o papel da religião. Infelizmente, como os bilhetinhos trocados a que se referiu o rabino Simcha Bonim de Pshischa, muitas vezes nosso impacto é exatamente o contrário, fortalecendo os poderosos e afligindo os oprimidos. Que nesse ano, o nosso processo de t’shuvá seja verdadeiro para cada um de nós e que nos permita encontrar equilíbrio, acolhimento e verdade.


Shaná Tová!

 

[1] https://www.estadao.com.br/sustentabilidade/prefeito-quer-acabar-com-trolebus-em-sp-vale-a-pena-colocar-fim-nos-onibus-ligados-a-rede-eletrica/

[2] https://www.dicionarioetimologico.com.br/bonde/ e https://bafafa.com.br/turismo/historias-do-rio/a-origem-curiosa-das-palavras-bonde 

[3] Mishná Rosh haShaná 1:2

[4] Kehati

[5] Albeck

[6] Mishná Sanhedrin 4:5

[7] Gen. 18:27

[8] https://zusha.org.il/story/שני-כיסים/

[9] https://web.archive.org/web/20221015013650/http://www.cofen.gov.br/brasil-enfrenta-uma-segunda-pandemia-agora-na-saude-mental_103538.html

[10] Margaret Moers Wenig, “Deus é uma mulher e Ela está ficando velha”, in Sonsino, Rifat, The Many Faces of God: A Reader of Modern Jewish Theologies, URJ Press: New York, 2004. pgs. 241-248.

[11] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasileiros-dizem-viver-em-pais-racista-mas-negam-praticar-discriminacao.shtml

[12] Marcia Falk, The Days Between, p. 31.

[13] Vaicrá Rabá 29:1