terça-feira, 16 de agosto de 2022

A mudança tem que vir de todos!

(uma versão em inglês deste texto foi publicado neste blog com o título “Change must come from everyone!)

O Sh’má é talvez a frase mais conhecida da liturgia judaica. De acordo com a tradição, ele é dito logo ao acordar e também ao se deitar; está entre as primeiras frases em hebaico que crianças judias aprendem e, muitas vezes, também a última frase pronunciada. Além da sua primeira frase, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um” [1], muitos de nós decoramos também o primeiro parágrafo em hebraico e em português: “e amará Adonai teu Deus, com todo teu coração, toda a tua alma e toda a tua força….”. Estas duas passagens vêm da Torá e faziam parte da parashá da semana passada [2]. Nem todo mundo sabe, no entanto, que os dois capítulos subsequentes estão em outras passagens da Torá. O terceiro parágrafo [3], que fala do talit e do tsitsit como instrumentos que, ao olharmos para eles, nos recordam de cumprirmos as mitsvot, está no livro de baMidbar e o segundo parágrafo, que fala de punições e recompensas para quem segue as orientações Divinas está na parashá desta semana [4].

Para quem presta atenção nas traduções destas passagens e compara o conteúdo do primeiro e do segundo parágrafos, parece haver uma certa redundância entre as aberturas dos dois textos: “Ame Adonai, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com a tua força” inicia o texto do primeiro parágrafo; “se vocês realmente escutarem os Meus mandamentos, que hoje ordeno a vocês para amarem Adonai teu Deus, e servirem a [Deus] com todo o teu coração e de toda a tua alma” é a abertura do segundo. Os comentaristas não deixaram esta semelhança entre os textos passar despercebida. Rashi nota que, enquanto o comentário do primeiro parágrafo é formulado no singular, o do segundo parágrafo é dirigido a toda a comunidade. Considerando que o foco do segundo parágrafo é a forma como Deus responde quando a humanidade escuta (ou não) Suas palavras, Ramban explica que as respostas Divinas não vêm em resposta às nossas ações individuais, mas apenas às da maioria da sociedade.

O rabino Arthur Waskow escreveu uma interpretação do segundo parágrafo do Sh’má [5], no qual ele associa nosso comportamento com relação à natureza, nos relacionamentos interpessoais e com nossa própria ambição e cobiça à forma como o planeta, a vida, Deus nos tratam. Nas suas palavras, se continuarmos “cortando o mundo em partes e escolher partes para adorar – deuses de raça ou de nação, deuses da riqueza e do poder, deuses da ganância e do vício”, então continuaremos enfrentando crise climáticas cada vez mais graves e um clima de ódio que acabará consumindo nossa existência.

Como destacou Ramban, estas consequências negativas são resultado do nosso comportamento coletivo e as soluções devem ser também entendidas de forma ampla. É certo que cada um de nós precisa cuidar da forma como se relaciona com o meio ambiente e com as outras pessoas, mas precisamos também desenvolver mecanismos sociais que garantam que estes esforços não sejam de apenas algumas pessoas bem intencionadas, mas a nossa nova forma de viver. 

Quem sabe, da próxima vez que escutarmos o Sh’má e seus três parágrafos, começamos a vislumbrar como gerar esta mudança social profunda?

Shabat Shalom!



[1] Aqui outros significados possíveis destra frase: https://youtu.be/ZUKF3Y_TdrQ

[2] Deut. 6:4-9.

[3] Num. 16:37-41.

[4] Deut. 11:13-21.

[5] https://bit.ly/3Aw6T4z



sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Dvar Torá: As muitas cores do Sh´má Israel (CIP)

(uma versão em inglês deste texto foi publicado neste blog com o título “Dvar Torah: The Many Colours of the Sh'mah Israel)



Eu já contei algumas vezes que, durante minha formação rabínica, estudei em duas escolas diferentes. Comecei estudando no Hebrew Union College, a instituição acadêmica do movimento reformista, no seu campus de Los Angeles, e conclui minha formação no Hebrew College, um seminário rabínico não vinculado a nenhum dos movimentos, na região de Boston.

Quando ainda estava estudando em Los Angeles, tive aula com o rabino Stephen Passamaneck, sobre quem eu já falei algumas vezes aqui. Além de dar aulas para alunos de rabinato, “Dr. P”, como os alunos carinhosamente o chamavam, era capelão do Departamento de Polícia de Los Angeles e ele costumava trazer sua arma para as aulas, deixando-a sobre a mesa, onde todos nós podíamos nos impressionar com ela. Vários alunos saíam da sala chorando devido a algum comentário ríspido que ele tinha feito e ele costumava se vangloriar de conseguir este feito. Mas apesar destas excentricidades, o que mais me marcou nos dois semestre em que estudei com “Dr. P” foi uma frase sua: “a Torá quer dizer o que os rabinos disseram que ela quer dizer”. Ou seja: como exercício intelectual podemos vasculhar o texto, virá-lo de um lado e de outro e tentar buscar qual o sentido original de cada frase, até de cada letra, do texto bíblico. Quando se trata das implicações do texto para a vida judaica contemporânea, no entanto, valem as interpretações dos rabinos que escreveram a Mishná, o Talmud, os midrashim, e os primeiros códigos da lei judaica. Gente que viveu há, pelo menos, oitocentos anos atrás.

Dr. P. certamente tinha razão em assuntos relacionados à lei e à prática judaicas. Não adianta ficar discutindo qual a intenção da Torá quando afirma 3 vezes que “não cozinhe o cabrito no leite de sua mãe.” A leitura rabínica de que este verso indica que não devemos misturar (não apenas não cozinhar) carne e leite (não apenas o cabrito no leite da mãe) se tornou tão disseminada na comunidade judaica que muitas vezes eu tenho dificuldade em mostrar para alunos que este não é, necessariamente, o sentido literal do texto.

Quando o tema em discussão pende mais para o teológico, no entanto, crescem as possibilidades de que gerações posteriores revisem o significado atribuído pelos sábios do passado. Uma das afirmações teológicas mais famosas de toda a Torá, está na parashá desta semana:

שמע ישראל, ה׳ אלוהינו, ה׳ אחד.
Sh'má, Israel, Adonai Elohêinu, Adonai Echad
Escuta, Israel, ה׳ é nosso Deus, ה׳ é um.

Se eu fizesse uma enquete sobre o que estas 6 palavras dizem, eu imagino que a maioria de vcs diriam que a entendem, que elas são a afirmação fundamental do monoteísmo judaico. No final das contas, as pessoas entendem que o Sh’má é uma forma judaica de dizer que existe apenas um Deus.

Será que é isso mesmo que o texto diz? Hoje eu quero explorar algumas possibilidades de interpretação deste texto fora da explicação mais comum e quero convidar cada um de vocês a reconsiderar seus possíveis significados. 

Rashi, o comentarista francês do século 11, cujas inserções de palavras no texto taquigráfico do Talmud se tornaram essenciais para a compreensão que temos daquela obra, acredita que o mesmo processo de enxerto de palavras precisa ser feito com o Sh’má. Para ele, “Escuta, Israel, ה׳ é nosso Deus, ה׳ é um” precisa ser entendido como: “Escuta, Israel, ה׳, que já é nosso Deus hoje, um dia será reconhecido como único no mundo todo” e ele termina seu comentário com uma frase que nós conhecemos do Aleinu: “בַּיּוֹם הַהוּא יִהְיֶה ה' אֶחָד וּשְׁמוֹ אֶחָד”, “baiom hahú, ihiyê Adonai echád, ush'mô echád“neste dia, ה׳ será reconhecido como único e seu nome será apenas um.” [1]

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida. [2]

O rabino Art Green parece concordar com essa ideia, mas vai além: “Escuta, Israel. O núcleo do nosso serviço não é uma reza, mas um chamado para nossos companheiros judeus e nossos companheiros humanos. Nele, declaramos que Deus é um — o que implica dizer que a humanidade é uma, que a vida é uma, que alegrias e sofrimentos são um — pois Deus é a força que une tudo isso. Não há nada óbvio sobre esta verdade, pois a vida como a vivemos parece infinitamente fragmentada. Os seres humanos parecem isolados uns dos outros, divididos por todos os medos e ódios que compõem a história humana. Os seres humanos parecem isolados uns dos outros, divididos por todos os medos e ódios que compõem a história humana. Mesmo em uma única vida, um momento parece separado do próximo, memórias de alegria e plenitude nos oferecem pouco consolo quando estamos deprimidos ou solitários. Afirmar que tudo é um em Deus é o nosso supremo ato de fé.” [3]

A teóloga feminista Judith Plaskow dá mais um passo nesta exploração do significado destas 6 letras: 
No nível mais simples, o Sh’má pode ser entendido como uma rejeição apaixonada do politeísmo. (…)

Essa compreensão do Sh'má, no entanto, não aborda a questão da unidade de Deus. Ela define “um” em oposição a “muitos”, mas nunca especifica realmente o que significa dizer que Deus / Adonai / Aquele que é-e-será é um. A unicidade de Deus é mera singularidade numérica? Significa simplesmente que, em vez de muitas forças governando o universo, existe apenas uma? (…)

Existe outra maneira de entender a unidade, no entanto, e isso é como inclusividade. Nas palavras de Marcia Falk, “A expressão autêntica de um monoteísmo autêntico não é uma singularidade de imagem, mas uma unidade abrangente de uma multiplicidade de imagens”. Em vez de ser a divindade principal no panteão, Deus inclui as qualidades e características de todo o panteão, sem nada do lado de fora. Deus é tudo em todos. Este é o Deus que “forma a luz e cria as trevas, que faz a paz e cria tudo”, porque não pode haver outro poder além de ou contrário a Deus, que poderia ser responsável pelo mal. Este é o Deus que é homem e mulher, ambos e nenhum deles, porque não existe gênero fora de Deus que não seja feito à imagem de Deus. Nesta compreensão da unidade, estender a gama de imagens que usamos para Deus nos desafia a encontrar Deus em aspectos da criação sempre renovados. O monoteísmo é sobre a capacidade de vislumbrar o Um nas formas mutáveis ​​dos muitos e através delas, para ver o todo em e através de suas imagens infinitas. “Ouçam, ó Israel”: apesar da natureza fraturada, dispersa e conflituosa de nossa experiência, há uma unidade que abraça e contém nossa diversidade e que conecta todas as coisas umas com as outras.” [4]
Marcia Falk, a poetisa-teóloga que teve a imensa chutspá de re-escrever o sidur inteiro, incluindo as passagens bíblicas, repaginou o Sh’má afirmando: 

 שְׁמַע, יִשׂרָאֵל: לָאֱלֹהוּת אַלְפַי פָּנִים, מְלֹא עוֹלָם שׁכִינָתָה, רִיבּוּי פָּנֶיהָ אֶחָד
Sh'má Israel, laElohut alfei panim, melô olám sh'chinatá, ribui panêia echád.
Escuta, Israel: O Divino está em abundância em toda parte e vive em tudo; os muitos são Um. [5]

É na visão de Marcia Falk que eu penso quando digo o Sh’má. Nela, reconhecemos a conexão que compartilhamos através de Deus, ao mesmo tempo em que identificamos a imensa diversidade em Deus. Como expressou o rabino o Joseph Soloveitchik, a referência fundamental da ortodoxia moderna norte-americana, “a luz branca do Divino é sempre refratada através do domo de realidade de vidros de muitas cores”.

Nesta véspera de Tu b’Av, do dia judaico do amor, celebramos todas as cores, todas as formas, todos os jeitos de amar — reconhecendo que o Divino habita em todas elas.

Shabat Shalom!

[1] Comentário de Rashi para Deut. 6:4 
[2] A Torah Commentary for Our Times, vol. 3, p. 110-111. 
[3] Ma’ayan Niguer (manuscrito), p. 12.
[4] My People’s Prayer Book, vol 1, p. 87-99.
[5] Marcia Falk, The Book of Blessings, p. 170-173.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Tu b'Av (2022) - fascículo da UJR

(originalmente publicado em https://ujr-amlat.org/wp-content/uploads/2022/08/TuBeAv2022_PORT.pdf)

Em filmes de caça ao tesouro, as maiores riquezas são aquelas escondidas nos lugares mais inacessíveis. Há algo parecido em tradições religiosas: aquilo que nos é de fácil acesso acaba sendo usado de forma tão intensa e repetida que pode se banalizar. Muitas vezes, tradições menos conhecidas ganham maior significado quando finalmente as descobrimos. 


Tu beAv é uma das datas judaicas de menor destaque. Para preparar este texto, eu consultei alguns dos meus livros favoritos sobre o calendário judaico e praticamente nenhum deles mencionava a data. A busca por suas diversas camadas de significado prometem, no entanto, recompensas especiais para quem conseguir chegar ao final da jornada.

 

Tu beAv, o décimo-quinto dia do mês de Av, acontece em meio a uma reviravolta do calendário. Ela segue um período de três semanas de intenso pesar, que culminam em Tishá beAv, o ponto focal das tragédias ocorridas na história judaica. Por isso, uma mishná estabelece que “quando começa o mês de Av, diminuímos nossa alegria”[1]. No entanto, uma outra mishná afirma que “para o povo de Israel, não haviam dias que fossem mais felizes do que Iom Kipur e Tu beAv”[2]. A mudança repentina de estado de humor do dia mais triste do ano para um dos mais felizes em apenas cinco dias torna esta transição ainda mais intensa.

 

O que tornava Tu beAv um dia tão feliz? Os arqueólogos dizem que se tratava de um festival pagão que comemorava a fertilidade e a fermentação, mas a primeira pista sobre a sua origem judaica vem da própria Mishná que a coloca como uma referência em felicidade no calendário, que afirma que neste dia as jovens de Jerusalém saíam com roupas brancas emprestadas para não envergonhar quem não tinha. Elas saíam e dançavam nas vinhas, convidando os homens a escolherem suas parceiras, sem se basearem nas aparências. A imagem de danças em roupas brancas em meio ao campo já traduz uma certa perspectiva de romantismo e ajuda a explicar porque Tu beAv passou a ser vista como a celebração judaica do amor.

 

Ainda assim, este texto da MIshná não explica o motivo de que esta celebração acontecesse em 15 de Av e os sábios do Talmud buscaram explorar a questão mais a fundo. Os sábios trazem diversas explicações, algumas delas relacionadas à suspensão de proibições de casamentos entre membros de diferentes tribos; outras explicações relacionam a data a eventos da história judaica, como o fim das mortes da geração que havia deixado o Egito, o fim da proibição de ir a Jerusalém nos tempos do rei Hoshea ou quando puderam enterrar as vítimas da batalha de Betar.Outra explicação é que a partir de 15 de Av, o Sol se tornaria mais fraco na terra de Israel, tornando mais difícil a secagem da lenha que era usada como oferta no Templo; por isso, eles paravam de cortar árvores nesta data[3].

 

Como em toda boa história de mistério, um detalhe aparentemente insignificante nos leva a revelações fundamentais para sua solução: a oferta de madeira que era trazida ao Templo. Uma mishná estabelece datas específicas para grupos de destaque trazerem madeira[4]. A data de 15 de Av era reservada a quem, por erro, não tinha comparecido na data correta e aos segmentos sociais de menor destaque. De acordo com Flavius Josefus, um historiador judeu-romano do primeiro século, em certa ocasião os participantes das cerimônias de oferta de madeira em 15 de Av eram tão numerosos que eles sobrepujaram os soldados romanos e os expulsaram da cidade. A multidão, então, queimou os arquivos, destruindo os registros das dívidas e libertando devedores de seus credores[5]. Este aspecto da data não teria recebido destaque na literatura rabínica por medo de que as autoridades romanas se ofendessem e proibissem sua comemoração.

 

Tu beAv se insere, assim, no universo das datas judaicas centrais: assim como Chanucá, teve sua dimensão de autodeterminação sublimado por receio de como as autoridades reagiriam; como as Pessach, Shavuot e Sucot, tem dimensões agrícolas relacionadas à estação do ano e seu impacto sobre a natureza; como Rosh haShaná e Iom Kipur, nos convida a ir além das aparências e encontrarmos as pessoas em suas verdades mais profundas. Como várias outras datas do calendário, sua origem pode estar associada a comemorações de outras culturas, que foram ressignificadas e se tornaram plenamente judaicas.

 

Tu beAv também traz algo unicamente seu. Era no 15 de Av que as jovens de Jerusalém trocavam de vestido para que seus pretendentes não pudessem identificar quem eram as moças ricas e quem eram as pobres; o 15 de Av era a data em que os segmentos de menor destaque social vinham trazer suas ofertas de madeira ao Templo e também foi no 15 de Av que uma revolta popular deu fim a uma situação de opressão financeira vivida pelo campesinato da época. Nestas três situações, há uma ênfase em equidade e em proteger os grupos sociais mais vulneráveis.  Quando pensamos sobre a ligação com relacionamentos românticos que Tu beAv passou a ter, é fundamental integrarmos os dois conceitos, identificando quais grupos hoje tem suas vidas amorosas colocadas em risco, desenvolvendo ações concretas para protegê-los e garantindo que possam continuar amando quem amam. 

 

No judaísmo, amor é ação[6] – Tu beAv pode ser a data para colocar isso em prática.

 

 

 

 

 

 



[1] . Mishná Taanit 4:6

[2] . Mishná Taanit 4:8

[3] . Talmud Bavli Taanit 30b

[4] . Mishná Taanit 4:5

[5] . https://blogs.timesofisrael.com/xylophoria/

[6] . http://ujr-amlat.org/art/pt/tu-beav-5781-o-amor-e-acao/