(texto originalmente publicado em https://ujr-amlat.org/wp-content/uploads/2020/10/pessach_2020_port01.pdf)
A origem da comemoração de Pessach
Com a lua cheia, em 15 de Adar, o primeiro mês do ano na contagem bíblica, os hebreus, que haviam permanecido em Mitsrayim por mais de quatro séculos, foram libertados. A noite anterior tinha sido passada em apreensão: um cordeiro deveria ser sacrificado, seu sangue usado nos batentes das portas para indicar as casas dos hebreus que seriam poupadas da última praga, a morte dos primogênitos; a carne do cordeiro assada e consumida por cada família com matsá e ervas amargas; o cinto apertado, sandálias nos pés, cajado na mão, prontos para partirem; tudo devia ser consumido de forma apressada,. É assim que a Torá relata o primeiro Pessach[1], que na tradição passou a ser chamado de Pessach Mitsrayim, a noite em que os hebreus foram libertados.
Os versos seguintes a este relato apresentam também a forma como Pessach deveria ser comemorado dali para frente (o que na tradição passou a ser chamado Pessach haDorot): com matsot e sem o consumo de chamêts por sete dias[2]. Quando o povo entrasse na Terra de Israel e a experiência da servidão fosse apenas uma memória, seus filhos lhes perguntariam o motivo deste ritual - e os hebreus deveriam explicar a seus filhos que era para lembrar-se da forma como Deus os havia redimido da opressão em Mitsrayim. Esta idéia, de que os pais devem explicar a seus filhos sobre a saída de Mitsrayim, é repetida quatro vezes na Torá[3], deu origem ao Seder de Pessach (uma forma estruturada de explicar o motivo da festa) e a algumas das tradições relacionadas ao número quatro (como as quatro crianças da hagadá, por exemplo).
A comemoração de Pessach nos nossos dias
De acordo com a tradição, não apenas nos lembramos da saída de Mitsarayim em Pessach, mas revivemos aquele momento: em cada geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela tivesse sido pessoalmente libertada[4]. O Seder de Pessach é nossa forma de reviver e explicar, de ir da opressão à redenção, de ligar nossa libertação no passado com os desafios que enfrentamos no presente e de expressar nossa esperança de que alcancemos sua solução também em nossas vidas: ba shaná ha-baá biYerushalayim.
O rabino e filósofo israelense, Donniel Hartman, presidente do Instituto Hartman, renomado Instituto de Estudos Judaicos em Jerusalém, defende que há mais de uma história sobre o Êxodo que pode ser contada em Pessach[5]. Uma versão da história relata um episódio de redenção do povo judeu devido à nossa relação com Deus, que não pôde ficar passivo quando Seus filhos estavam sendo oprimidos. É uma perspectiva em que a experiência do Êxodo é particular e tem pouco a ensinar sobre outros episódios de opressão nos quais o povo judeu não esteja envolvido. Uma outra versão da história trata de um processo de Libertação conduzido porque Deus odeia a opressão, independentemente das partes envolvidas. O Rabino Hartman lembra que estas duas perspectivas foram contempladas no texto da hagadá, mas que nem sempre recebem o mesmo destaque na forma como contamos a história – e nos desafia a considerar qual mensagem de Pessach queremos privilegiar em nossos sedarim.
A tensão entre o foco na servidão e subsequente libertação dos hebreus ou nas opressões contemporâneas tem definido, em grande parte, a forma como o ritual se desenvolveu no último século. Por uma narrativa mais contemporânea e inclusiva, estão sedarim nos quais a opressão das mulheres, dos refugiados, dos LGBTQ+, dos negros, ocupam lugar central como expressão contemporânea do sofrimento pelo qual os hebreus passaram em Mitsrayim. A criação de hagadot feministas, por exemplo, é extensa e remonta há quase cinco décadas. Nestes textos, é destacado o papel das mulheres na redenção dos hebreus: Iocheved, a mãe de Moshé que teve a coragem de ter um filho apesar das restrições impostas pelo faraó; Miriam, a irmã que acompanhou a cesta em que Moshé estava e ofereceu ajuda à filha do faraó; Bat-Ia, a filha do faraó, que tendo encontrado um bebê hebreu nas águas do rio, contrariou as ordens de seu pai e salvou-o; Shifra e Puá, as parteiras egípcias que se negaram a seguir as ordens do faraó para matar os meninos hebreus porque eram “tementes a Deus.” Numa adição ao ritual de Pessach que tornou-se bastante comum mesmo fora dos sedarimfeministas, uma laranja foi adicionada à keará, o prato com alimentos simbólicos colocado no centro da mesa. De acordo com Susannah Heschel, a autora desta ideia, “eu escolhi a laranja porque ela sugere como pode ser frutífero para todos os judeus quando lésbicas e homens gays são membros ativos e contribuem para a vida judaica.”[6]
Outra adições recentes à keará incluem azeitonas (em lembrança ao conflito entre israelenses e palestinos, a importância que campos de oliveiras têm para as duas culturas e o sinal de paz e tranquilidade que um ramo de oliveira trazido por uma pomba representou para Noach[7]) e produtos agrícolas nos quais as práticas de produção contemporâneas possam incluir o trabalho em condições similares à escravidão (como cana de açúcar, avelã, cacau e tomate). Em contextos reformistas, cada família e cada comunidade são convidadas a buscar como expressar, de forma ritual, sua preocupação com as questões contemporâneas que envolvam a opressão de grupos ou comunidades.
Algumas perguntas para você pensar….
Pessach é conhecida como a festa em que as perguntas são encorajadas. No entanto, algumas perguntas da hagadá são ritualizadas, focadas em tecnicalidades da observância do feriado. Que outras perguntas você gostaria de trazer para o seu seder este ano? Que conversas sobre a Opressão e sobre a Liberdade você gostaria de estabelecer com seus amigos e familiares?
Aqui vão algumas ideias:
• No Chassidismo, a abstinência de chametz é entendida como uma metáfora para o trabalho espiritual de desinflar nossos egos “inflados”. Tomando esta ideia como ponto de partida, como podemos usar as discussões do seder para melhorar nossa interação com o mundo?
• Conforme mencionado acima, Donniel Hartman nos desafia a considerar o equilíbrio entre o particular e o universal na história que contamos em nossos sedarim. Em sua opinião, qual deve ser a ênfase das conversas ao redor da mesa de Pessach: a libertação dos hebreus do Egito ou a luta contra a opressão nos nossos dias?
• No tempo dos hebreus, os dez “golpes” (normalmente traduzidos como “pragas”) foram a forma que Deus encontrou para forçar o faraó a libertar os hebreus da servidão. De que ferramentas dispomos hoje em dia para agir em defesa dos valores representados por Pessach?
• Muitas vezes, a tradição judaica estabelece que, quando atingirmos uma posição de poder, nosso papel será distinto daquele que era até então, nos obrigando a agirmos com mais ênfase na defesa dos segmentos mais vulneráveis da sociedade (a linguagem utilizada, normalmente, faz referência às viúvas, aos órfãos e aos estrangeiros). De que maneira a criação do Estado de Israel mudou a responsabilidade que judeus têm de agirem pelo fim da opressão nos lugares em que se encontram?
[1] . Ex. 12:1-13
[2] . Ex. 12:14-20
[3] Ex. 12:25-27; Ex. 13:14-16, Ex. 13: 5-8, Deut. 6:20-25.
[4] . Mishná Pesachim 10:5
[5] . http://blogs.timesofisrael.com/pesach-a-tale-of-two-stories/
[6] . Heschel, Susannah. “Orange on the Seder Plate.” in The Women’s Passover Companion: Women’s Reflections on the Festival of Freedom. Rabbi Sharon Cohen Anisfeld, Tara Mohr and Catherine Spector (eds.). Woodstock, VE: Jewish Lights. 2003. pp. 70-77.
[7] . Gen. 8:11.
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