No deserto, cada uma das necessidades dos israelitas era satisfeita por um presente direto de D'us. Eles não trabalhavam para ter comida. Seu pão era o maná que caía dos céus; a água deles vinha do poço de Miriam; suas roupas não precisavam de conserto. A posse da terra de Israel significava um novo tipo de responsabilidade. O maná cessaria. Pão viria apenas através da labuta. Os milagres providenciais seriam substituídos pelo trabalho; e com o trabalho viria o perigo de uma nova preocupação. (…) Seu temor era que a preocupação de trabalhar a terra e ganhar a vida pudesse, no final das contas, deixar os israelitas com cada vez menos tempo e energia para o serviço de D'us. Eles disseram: “É uma terra que consome seus habitantes”, significando que a terra e seu trabalho, e a preocupação com o mundo materialista, “engoliriam” e consumiriam todas as suas energias. Sua opinião era de que a espiritualidade floresce melhor na reclusão e na retirada, na paz protegida do deserto, onde até mesmo a comida era “dos céus”. [4]
sexta-feira, 28 de junho de 2019
Dvar Torá: Abrace a mudança! (CIP)
sábado, 15 de junho de 2019
Introdução ao Sidur Shabat Shalom da CIP
Ao estabelecer a Criação, nos primeiros capítulos de Bereshit (Gênesis), Deus cria a luz e a escuridão; a terra, os mares e o céu; o Sol, a Lua e as estrelas e assim por diante, até que no sexto dia foi criada a humanidade, à imagem e semelhança de Deus. A luz e a escuridão definem o dia, o Sol e a Lua definem os anos e os meses, e já existiam antes do sexto dia, quando a humanidade foi criada. O Shabat, no entanto, só tem sentido depois da criação do primeiro homem e da primeira mulher, que puderam seguir o exemplo Divino, cessar todo o trabalho no sétimo dia e nele descansar.
Nesta mesma história da criação, o sétimo dia - o Shabat - é a primeira de Suas criações que Deus abençoa. O rabino Abraham Joshua Heschel traduziu este conceito, afirmando que, enquanto outras culturas valorizam o espaço e o santificam, o judaísmo santifica o tempo; o Shabat seria o exemplo mais claro desta preocupação judaica com o tempo sagrado, uma catedral no tempo:
O judaísmo é uma religião do tempo visando a santificação do tempo. Diferentemente do homem propenso para a espacialidade, isto é, aquele para quem o tempo é invariável, interativo e homogêneo, para quem todas as horas são iguais, desprovidas de qualidade e conchas vazias, a Bíblia percebe o caráter diversificado do tempo. Não existem duas horas semelhantes. Cada hora é única e uma só, dada naquele momento, exclusiva e infinitamente preciosa.
O judaísmo nos ensina a nos prendermos à santidade no tempo, a nos vincularmos aos acontecimentos sagrados, a aprender como consagrar santuários que emergem do magnificente curso de um ano. Os “Shabatot” são nossas grandes catedrais (…) [1]
Paradoxalmente, a construção das “catedrais no tempo” ou “palácios no tempo” de que Heschel fala não envolvem nenhum processo físico de construção, mas somente a disposição para vivenciar as 25 horas do Shabat de uma forma radicalmente diferente.
O que faz do Shabat um dia tão especial? Podemos olhar na forma como os Dez Mandamentos justificam a observância do Shabat para começarmos a responder a esta pergunta. Apesar do Shabat aparecer no quarto mandamento tanto no livro de Êxodo quando em Deuteronômio, a formulação é diferente em cada um destes textos.
Em Êxodo [2], somos instruídos a “lembrar do Shabat e santificá-lo”, porque Deus completou a Criação no sétimo dia, nele descansou e o abençoou. Implícita na explicação de que nosso dia do descanso está vinculado ao descanso Divino é o fato da humanidade ter sido criada à imagem de Deus e dever, na medida do possível, adotar a atitude de Deus como exemplo para seu próprio comportamento.
Em Deuteronômio [3], o texto nos instrui a “observar o Shabat e santificá-lo”, porque fomos servos na terra do Egito e Deus nos tirou de lá com mão forte e braço estendido. Nesta formulação, é o fato de sermos livres que nos confere a possibilidade de celebrarmos o Shabat de forma autônoma.
No Shabat, portanto, celebramos nossa humanidade e nossa liberdade. É um dia no qual a ênfase está no que somos, não no que produzimos. Aproveitamos a oportunidade para descansar e nutrir nossas almas novamente [4], vivendo por um dia na ilusão de um mundo perfeito. A tradição rabínica diz que o Shabat é um aperitivo do mundo vindouro, uma época em que todos os nossos problemas estarão solucionados. Por isso, caminhar no Shabat pode ter um ritmo diferente, as conversas no Shabat podem seguir um padrão diferente, de realmente nos importarmos de ouvir as respostas como se tivéssemos todo o tempo para aquela pessoa.
A liturgia de Shabat reflete estas perspectivas. Na sexta-feira, o serviço adicional de Cabalat Shabat antecede Arvit, o tradicional serviço vespertino. Elaborada pelos místicos na cidade de Tsfat no século XVI, a liturgia do Cabalat Shabat é formada por Salmos e piutim (poemas litúrgicos, geralmente extra-bíblicos) que fazem referência aos seis dias da Criação, levando ao descanso do Shabat. Lechá Dodi, um de nossos piutim mais conhecidos, pode ser lido em muitos níveis, como é típico da literatura mística. Em sua leitura mais concreta, é um poema de amor ao Shabat, tratado como uma noiva a quem recebemos com carinho e devoção. O verbo usado no quarto mandamento para “santificar” o Shabat (lecadesh) também é usado quando o noivo se casa com sua noiva, dando origem a esta analogia com o casamento. Um midrash [5] conta que, durante a Criação, cada dia da semana foi alinhado com seu par e o Shabat ficou sozinho; ao reclamar com Deus, o Shabat recebeu o povo de Israel como seu par e é por isso que somos instruídos a “santificá-lo” (ou casar com ele) a cada semana.
Em outras partes do serviço (como na Amidá), procuramos remover as seções em que fazemos pedidos a Deus, em consonância com a perspectiva de que o Shabat é um dia em que vivemos em um mundo perfeito, no qual não temos mais o que pedir. Um midrash [6] já reconhecia o desafio que esta proposição representa e propõe, então, que vivamos como se o mundo fosse perfeito e tivéssemos terminado todas as nossas tarefas. Se não é possível realmente consertar todos os problemas do mundo em seis dias, o Shabat ao menos nos dá inspiração, ao nos permitir vivenciar por algumas horas a experiência de um mundo sem problemas; ao final do Shabat, voltamos ao ritmo da semana, motivados pela realidade alternativa que pudemos conhecer.
Quando o Shabat chega ao fim, nos despedimos dele procurando no ritual da Havdalá e sua luz, seu vinho e seus deliciosos aromas, algum consolo pela despedida. Os seis dias da Criação são uma necessidade de nosso mundo físico, sem o qual não haveria a possibilidade do Shabat, mas há muito tempo a tradição judaica vem buscando trazer dimensões do Shabat para o resto da semana, santificando nossas experiências a cada momento. [7]
Como podemos tornar nossas relações durante a semana tão verdadeiras quanto no Shabat? Como transformar o ritmo do nosso andar também durante a semana e abrir os olhos para a beleza do processo contínuo da Criação? Como resignificar nossas ações no mundo, reconhecendo nossa humanidade e liberdade também durante os seis dias da semana?
A poetisa litúrgica Marcia Falk refletiu a busca por uma relação equilibrada entre as demandas da semana e o descanso do Shabat em seu poema para a havdalá:
Distinguamos partes dentro do todo e abençoemos suas diferenças.
Como o Shabat e os seis dias da criação, que relacionamentos tornem nossas vidas completas.
Da mesma forma que o descanso torna o Shabat precioso, que o trabalho dê significado à semana.
Separemos o Shabat dos outros dias da semana,
Buscando santidade em ambos. [8]
Que este seja nosso esforço constante: a busca de santidade em todos os momentos de nossas vidas. O Shabat tem o potencial de ser um grande catalizador desta busca se nos permitirmos realmente desfrutar destas 25 horas nas quais aquilo que somos conta muito mais do que aquilo que fazemos.
Shabat Shalom!
[1] Heschel, Abraham J., O Schabat: seu significado para o homem moderno. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004. pag. 9-19.
[2] Ex. 20:8-11.
[3] Deut. 5:12-15.
[4] De acordo com Ex. 31:17.
[5] Bereshit Rabá 11:8.
[6] Mechilta de Rabi Ishmael, baChodesh/Itrô, 20:9.
[7] Veja, por exemplo, a discussão entre Hilel e Shamai no Talmud Bavli Beitzá 16a.
[8] Falk, Marcia. The book of blessings : new Jewish prayers for daily life, the Sabbath, and the new moon festival. San Francisco, Calif: HarperSanFrancisco, 1996. pag. 318.